Quem é o dono dos direitos de uma arte criada por computador?

A criatividade humana já não é mais indispensável na produção de obras artísticas, como ilustrações, textos literários, vídeos e até mesmo música. Plataformas que usam inteligência artificial (IA) para dar um “toque final” em uma canção, tornando-a semelhante a outra música escolhida como referência, têm causado preocupação no setor musical.

No site Songmastr, por exemplo, é possível fazer com que a sua música original passe por um processo de masterização que a torna parecida com a de algum grande artista, como Beyoncé ou Bob Dylan. Basta fazer o upload das duas músicas e a inteligência artificial se encarrega do restante, fazendo alterações nas ondas sonoras para que se assemelhem à obra usada como referência.

Softwares como esse foram criticados pela RIAA, a associação da indústria fonográfica dos Estados Unidos. “Esses serviços, ou seus parceiros, estão treinando seus modelos de IA usando as músicas de nossos membros. Esse uso não é autorizado e infringe os direitos de nossos membros ao fazer cópias não autorizadas de seus trabalhos”, disse a associação em documento enviado ao Escritório do Representante de Comércio dos EUA.

As dúvidas sobre o tema são muitas, além dos fatores a serem avaliados o que é ou não plágio. Primeiramente, deve-se levar em conta a inspiração. Um profissional que trabalha com mixagem e masterização pode se inspirar em referências do mercado, sem que isso se torne uma cópia. A questão é que agora algoritmos podem fazer isso.

“Um profissional (que se preze) do mercado musical ainda busca manter um equilíbrio entre a novidade requisitada pela criação artística e o diálogo com o estado da arte, com o que já foi feito por outros artistas. Entretanto, algoritmos não compartilham estas mesmas preocupações”, afirma Clayton Mamedes, professor do curso de música da UFPR.

A fórmula mágica ou engessamento artistico?

Uma das maneiras como as IAs podem ser usadas é na apropriação de características presentes nos hits. Para atingir o público ouvinte de determinado subgênero musical, os produtores ou artistas identificam aspectos das músicas de sucesso naquele nicho e os recriam automaticamente. É algo similar com o que faz a Netflix, que usa seu banco de dados sobre gostos da audiência para produzir novas séries.

“A indústria cultural já trata a música de entretenimento como um produto comercial. O que está mudando é que parte do processo que era feito manualmente (tanto na criação quanto na difusão) está sendo delegado a algoritmos computacionais”, opina Mamedes.

Por outro lado, Fernando Iazzetta, professor de Música e Tecnologia na USP,  acha que a mesma tecnologia pode tanto criar novas possibilidades criativas quanto engessar e padronizar o trabalho. 

“Você pode usar IA para fazer composição e usar isso criativamente ou você pode, de fato, fazer uma abordagem visando ao apelo comercial. Isso tem muito mais a ver com nosso sistema capitalista, em que todas essas ferramentas são rapidamente absorvidas para capitalizar algum tipo de produto. A música seria só mais um produto em que você pode aplicar essas técnicas”, argumenta.

Inspiração automatizada


Embora não tenham as inquietações éticas ou subjetividades humanas, os softwares não estão necessariamente fazendo algo errado. Usar uma obra como referência para processos de mixagem e masterização, inspirando-se em timbres e volumes, por exemplo, não infringe nenhum direito autoral.

O problema, segundo o professor, acontece no momento de fazer o upload da música de referência na plataforma. “Neste caso, há uma infração de direito autoral, já que se trata de distribuir uma cópia do fonograma sem autorização do detentor dos direitos”, explica. Por isso, ele acredita que as ferramentas deverão passar por uma adequação nesse ponto do processo.

Na Furf Design Studio, empresa de design em Curitiba, a inteligência artificial é usada para apresentar referências na criação de um projeto sem que estejam necessariamente no produto final. Responsáveis por desenvolver uma intervenção urbana inspirada na representação de um átomo, os profissionais usam a IA de geração de imagens Dall-E para encontrar referências.

“Temos usado [IA] principalmente para identificar simbologias e padrões que estão no inconsciente coletivo”, diz Mauricio Noronha, cofundador da Furf.

Ele usa a ferramenta, por exemplo, para buscar resultados para “pintura realista de uma escultura gigante de um átomo no meio de uma praça”. Assim, ele pode analisar as imagens geradas pela IA e decidir se usa ou não algumas das ideias apresentadas nas imagens.

“É como ter um funcionário que gera alternativas, em uma velocidade estrondosamente rápida. Com base nisso criamos a nossa própria versão, completamente diferente, mas com fundamentos de pesquisa parcialmente gerados pela inteligência artificial”, diz.

Para Noronha, a polêmica sobre autoria não é recente pois todo criador (seja humano ou IA) usa diversas referências como base. “Mas mesmo com a IA, é um humano, por ora, que precisa chegar no conceito, simbologias, estilo desejado e assim escrever uma combinação de palavras que efetivamente faça um sistema como o Dall-E entregar resultados que realmente possam ajudar no processo criativo”, defende.

O desafio de definir o que é original


Juridicamente, identificar semelhança entre obras de IA e humanas pode ser uma tarefa difícil por ser suscetível a interpretações. “A aferição do grau de originalidade da obra, quanto à sua melodia, à composição e progressão de acordes se aproxima da referência, ou seja, da obra antecedente, tem alto grau de subjetividade”, afirma Patricia Peck, conselheira titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados.

Entretanto, é possível que sejam aplicados métodos mais objetivos para identificar plágio. “A comprovação pode ser feita por perícia, com o próprio uso de softwares que identificam em que grau a obra foi copiada”, diz Renato Opice Blum, advogado e professor de direito digital na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) e no Insper.

Caso a obra não apresente similaridades evidentes a outras ou incorpore trechos de obras em domínio público ou adequadamente licenciadas, não haverá infração. Por outro lado, caso seja confirmado o plágio, há implicações civis e penais.

“No âmbito civil, o infrator pode ser condenado a reparar os danos patrimoniais causados ao autor da obra plagiada, além da condenação por danos morais. A penalidade é pecuniária, ou seja, pagamento de uma indenização”, diz Peck.

Já no âmbito penal, além de multa, outras penas que podem ser impostas são prisão de três meses a um ano para condenações mais leves; ou de dois a quatro anos com regime fechado, semiaberto ou aberto, se for um caso mais grave.

“Mesmo que a IA venha a fazer algo não explicável ou contrária à sua programação ou treinamento, caberá responsabilização, que hoje é discutida em muitos países, sobre o proprietário, o desenvolvedor ou usuário”, afirma Peck. Essa possibilidade está prevista no Projeto de Lei 21/2020, ainda em tramitação, que estabelece o marco legal do desenvolvimento e uso da Inteligência Artificial (IA).

Também recai sobre o humano programou ou usou a IA o direito autoral pelas obras que venham a ser produzidas pelo algoritmo. Essa definição, no Brasil, se tornou pública em setembro deste ano, quando o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) se manifestou afirmando que IAs não podem ser indicadas como inventoras em pedidos de patentes.

A questão do direito autoral de músicas e outras obras criadas por IAs será, para Iazzetta, rapidamente solucionada quando mais casos surgirem, provocando a necessidade de regulamentação. “Com o aparecimento desse problema, vamos ter legislação, acordos ou procedimentos éticos para regular isso. E isso vai acontecer com obras de arte, design e literatura em um futuro próximo”, diz.

Fonte: Terra Imagem: Canaltech