A geopolítica da propriedade intelectual: O caso da produção de antirretrovirais e o licenciamento compulsório para medicamentos

Sheila  de  Souza  Corrêa  de  Melo

Membro da Comissão de Propriedade Intelectual e Inovação da OAB/PA, mestre em Propriedade Intelectual e Inovação pelo INPI, mestranda em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para a Inovação pelo PROFNIT/IFPA e analista da Embrapa. E-mail: sscmelo@yahoo.com.br

Maria das Graças Ferraz  Bezerra

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará e professora do Programa de Pós-graduação em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para a Inovação – PROFNIT/IFPA. E-mail: mgferrazb@gmail.com

 

Sumário: 1. Introdução – 2. Antes do fim da Aids – 3. A produção de antirretrovirais e a geopolítica da propriedade Intelectual – 4. Impactos das ocorrências de licenciamento compulsório de medicamentos para o tratamento de Aids no Brasil – 5. O começo do fim? – 6. considerações finais – referências bibliográficas

  1. Introdução

No final dos anos de 1980, à época com as primeiras alternativas farmacológicas para tratamento da crescente epidemia de HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana, em português), Herbert José de Sousa, o Betinho, ao comentar os avanços das políticas de saúde e a relação do Estado na discussão da pauta argumentava que, em termos de responsabilidade social deveria ser considerado um absurdo alguém morrer em decorrência da Aids no Brasil. Naquele mo- mento os conhecimentos sobre a doença eram precários, as alternativas medicamentosas tanto quanto e os custos ainda maiores, mas ainda assim havia no horizonte uma expectativa de que tão logo uma cura seria descoberta e disponibilizada à sociedade.

Os efeitos da epidemia de HIV a partir da segunda metade dos anos de 1980 repercutiram e produziram efeitos na organização dos senti- dos sociais para o sexo e os processos de adoecimento, bem como profundas transformações na relação do Estado com setores da sociedade até então colocados em posições marginais e desqualificados, a exemplo de homossexuais, travestis e transexuais, profissionais do sexo, imigrantes do Terceiro Mundo, usuários de drogas injetáveis, enfim, populações que a despeito da nomenclatura utilizada na época, não eram grupos “de risco”, mas mais propriamente grupos “em risco”. Nos termos de Susan SONTAG, a Aids se converteu em uma nova metáfora, uma metáfora que corporificava e dava forma a estigmas, pressões, violências e processos de desumanização frente a alguns contingentes, a exemplo desses acima nomeados. Todavia, mais que isso, a emergência da Aids e a forma com que sua eficácia se propagou, levando a morte de milhares de pessoas, colocou em evidência uma complexa e intricada relação entre as responsabilidades sociais do cientista e as ambições do mercado a partir dos múltiplos agenciamentos econômicos, do lugar que tecnologias de pesquisa biomédica ocupavam na possibilidade de vida de alguns sujeitos, na forma como se traduziam e operavam noções relativas à propriedade, inovação e ética.

De modo simultaneamente simples e complexo, é possível desmontar esses componentes através da pergunta: em um contexto de epidemia onde contingentes inteiros estão debilitados naquilo que lhes confere a possibilidade de vida, seria lícito produzir alternativas que estão restritas aos interesses de grandes corporações farmacêuticas que cobrassem valores destoantes das realidades de vida e possibilidade da maioria dessas pessoas? Essa questão expõe os modos de ação em um intenso poder, ou mais propriamente um “biopoder”, em termos foucaultianos (FOucAulT, 2013), um poder que de maneira polimorfa e capilar incide sobre as possibilidades de deixar viver ou fazer morrer, suscitando assim um debate ético sobre os limites do mercado, das patentes, das ideias e acordos internacionais sobre propriedade Intelectual e direitos de exploração de produtos e processos que poderiam salvar as vidas de pessoas em situação de vulnerabilidade.1

Mais de três décadas depois dos primeiros casos registrados de infecção por HIV, a cura ainda não é uma realidade palpável, ainda que segundo alguns cientistas esteja cada vez mais próxima, de modo que usualmente se vê na mídia, nos meios acadêmicos, militantes e mesmo a partir do Estado a perspectiva que estaríamos vivendo a última década da Aids (pArKEr, 2016). Esse fim é fundamentalmente um fim farmacológico, produzido a partir de uma complexa e sofisticada rede de interesses que reúne em perspectiva transnacional, por um lado, agentes concretos como cientistas, movimentos organizados, pessoas vivendo com HIV, e por outro, estruturas e instâncias sociais disformes, apesar de concretas, a exemplo de laboratórios, do mercado e mesmo os Estados nacionais. A mediar esses agentes e instâncias que conformam um campo em tensão, estão noções e sentidos relativos à propriedade, responsabilidade e lucro.

O propósito desse breve ensaio é apontar algumas reflexões sobre os impasses e conflitos a partir da perspectiva da ideia de propriedade na esteira das tensões estabelecidas por agentes tão múltiplos e, por vezes, dispersos e divergentes em seus interesses e modos de operação. A pretensão é a partir da experiência brasileira frente o licenciamento compulsório de patentes farmacêuticas para medicamentos utilizados no tratamento das infecções por HIV e da Aids, refletir sobre os sentidos e jogos de forças que compõe uma rede complexa de interesses. como já sinalizado, a interface de aproximação é justamente as discussões sobre propriedade Intelectual no marco de uma política pública em um contexto de acordos multilaterais para difusão e exploração de produtos, nesses casos, resultantes de intensos investimentos da indústria farmacêutica na produção de respostas para doenças.

2. Antes do fim da aids     

Na manhã do dia 05 de junho de 1981, o center for disease con- trol and prevention – cdc dos Estados unidos tornava público através de uma nota que cinco jovens gays da cidade de los Angeles havia sido acometidos por um tipo raro de pneumonia. poucos dias antes da nota haver sido publicada dois dos cinco jovens faleceram e surgiram casos de infecção pulmonar semelhante nas cidades de San Francisco e Nova York, também entre homens jovens e homossexuais. Três dias depois o CDC constituiu uma força-tarefa composta por especialistas de várias áreas para investigar os casos. dos esforços daí resultantes chegou-se a parcas conclusões: a primeira é que a doença parecia ter uma conexão estreita com o comportamento sexual dos acometidos; a segunda era que a maior parte desses eram gays ou homens heterossexuais que mantinham relações com outros homens. As causas da infecção permaneciam pouco esclarecidas, de modo que se cogitou alguma relação com o consumo de drogas inalantes utilizadas para produzir excitação em saunas e bares frequentados por homens gays, e até mesmo a possibilidade de infecção por organismos de regiões endêmicas que teriam chegado aos Estados unidos através de turistas e viajantes.

Esses foram os primeiros casos registrados do que, na época, ficou chamado de doença Imunológica relacionada aos Gays – DIRG, e posteriormente, com os avanços das pesquisas sobre as causas da doença foi renomeado como Aids, ou Sida (Acquired Immune deficiency Syndrome, em português Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). O clima de pânico e de intensa estigmatização sobre as populações acometidas em primeiro momento, como sugere SONTAG (2007), configurou a doença a uma experiência pré-moderna de adoecimento. Nesses primeiros anos a aura que pairava ainda era de mistério sobre os meios de contaminação e seus efeitos; a certeza era apenas de uma linha de continuidade e normalidade que ligava rapidamente uma doença grave e a morte (SONTAG, 2007, p. 104).

Os primeiros anos da epidemia foram marcados pelo crescente número de mortes de jovens gays, migrantes, profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis. A identificação das principais vias de contaminação conduziu também ao reconhecimento dos principais grupos acometidos, o que por sua vez produziu um desloca- mento na forma com que se pensava a doença. Não se tratava tão somente de uma epidemia relacionada aos gays como a denominação de DIRG parecia implicar; a doença, no meio popular, antes chamada de “câncer gay”, passou a ser reportada como doença dos 5H (homosexuals, haitians, heroinmaniacs, hemophiliacs and hookers, referindo-se a homossexuais, haitianos, usuários de heroína, hemofílicos e trabalhadores sexuais). O desconhecimento das causas da contaminação associados ao despreparo geral para se discutir aquilo que os cientistas haviam identificado como um eixo comum – a vida sexual – conduziram os obituários a ocuparem páginas e mais páginas dos jornais. Enquanto famílias buscavam o sigilo e privacidade sobre as mortes de seus entes ao solicitar que os médicos não registrassem como causa da morte a infecção pela doença desconhecida, celebridades eram expostas em sua intimida- de à medida que os primeiros sintomas e efeitos do adoecimento se tornavam visíveis.

A história da Aids é ilustrativa de uma série de transformações nas sociedades ocidentais, dentre as quais se pode evidenciar não apenas a dimensão pública que a sexualidade, antes acomodada no campo do privado, passou a ocupar; sobremaneira, para os propósitos desse artigo, esse momento também evidenciou a forma como a ciência, em especial os saberes biomédicos, alcançaram uma dimensão política fundamental, o que pode ser traduzido na sugestão de Paul Preciado (2010) de que no mundo contemporâneo o poder que emana da indústria farmacológica é uma das instâncias de regulação da vida. Isso se traduz também na história da Aids, especialmente no modo como em pouco tempo se produziu respostas e alternativas para o controle da epidemia, desde a popularização do uso do preservativo, em especial entre homens homos- sexuais, mas também através de uma sofisticada rede de cientistas, laboratórios e do Estado, interessados em conhecer a doença e produzir uma cura. como lembra o infectologista Artur Timer – MAN e a jornalista Naiara Magalhães: dois anos após o anúncio dos primeiros casos de Aids, nos Estados uni- dos, a causa da doença já estava descoberta, com o vírus isolado em labora- tório. um par de anos mais e já se tinha o teste de sangue disponível para diagnosticar a infecção. Em 1987, passados seis anos da eclosão do surto, o primeiro medicamento contra a Aids, conhecido pela sigla AZT, estava em uso (TIMErMAN e MAGAlHãES, 2015, p. 111).

Os cientistas ao isolarem o vírus em laboratório descobriram que a Aids era causada não por um fungo, mas por um vírus, uma estrutura caracterizada por uma cápsula de proteína e material genético em seu interior. Se alguns dos vírus até então identificados tinham o DNA como material genético, o que produzia a eficácia do HIV é que seu material genético era um RNA (ácido ribonucleico). O HIV é assim o que em termos biomédicos se nomeia como retrovírus, um vírus que têm a capacidade de replicar-se a partir da trans- formação do RNA interno em DNA. Não bastasse isso, o que torna ainda mais complexa a infecção pelo HIV e outros retrovírus é a capacidade que tem de se replicar de maneiras variadas, produzindo formas de mutação em velocidade. O HIV incide sobre as células de defesa do organismo, as células cd4, e ao identificar a infecção e iniciar o processo imunológico de defesa, as células cd4 acabam por favorecer o próprio processo de replicação do HIV.

O AZT, primeiro medicamento disponibilizado para tratamento da infecção pelo HIV, havia sido testado desde a década de 1960 como possibilidade de tratamento para o câncer e logo abandonado. Essa decisão devia-se ao fato de que, apesar do crescente número de infecções, a indústria farmacêutica acreditava que o número de doentes ainda não justificava os altos in- vestimentos na produção de uma droga que garantisse o retorno financeiro, como observou Mario Scheffer (2012, p. 39). Assim, as instâncias governamentais de gestão da saúde e aca- dêmicos investiram em alternativas dentre os estudos anterior- mente realizados na produção de outras drogas. Os estudos para uso do AZT entre pessoas imunodeprimidas pelo HIV foram iniciados em 1985, nos Estados unidos e liberado para comercialização em março de 1987. A terapia com AZT incluía a administração de 24 comprimidos ao longo do dia que poderiam garantir tão somente uma sobrevida de 6 a 24 meses nos casos mais graves (Scheffer , 2012).

Os anos seguintes foram marcados pela sofisticação da Terapia Antirretroviral – TArV através da produção de novas drogas e de sua combinação, primeiramente a partir de combinação dupla que reduziria a quantidade de pílulas ingeridas ao longo do dia, como também garantiria melhor eficácia. Nos anos subsequentes, se produziu a classe de medicamentos combativos mais eficazes a partir de uma combinação tripla de medicamentos e que poderiam agir diretamente sobre os mecanismos de replicação do vírus através do que se chama de “inibição de protease”. Esse processo de terapia tripla constituiu o que popularmente se chamou de “coquetel”, ou Terapia Antiviral Altamente Ativa. O principal efeito do coquetel era a possibilidade de controle sobre o vírus enquanto durasse a terapia. O coquetel produziu, assim, um ponto nodal na questão: a Aids deixou de ser uma doença fatal para tornar-se uma doença crônica e controlável desde que o paciente seguisse uma rotina rígida de cuidados que se verificavam principalmente através da ingestão correta dos medicamentos.

  1. produção de antirretrovirais e a Geopolítica da Propriedade Intelectual

Os crescentes casos de infecção pelo HIV em todo o mundo tiveram como principal efeito a descentralização da preocupação em produzir respostas para a Aids a partir do Estado. Setores da indústria farmacêutica atentos às cobranças que emergiam tanto do Estado e organizações de civis iniciaram os primeiros investimentos que corroboraram para a produção de medicamentos e estratégias de controle do vírus mais eficientes, no marco da primeira e da segunda geração de alternativas medicamentosas.

Como sugerem os trabalhos de Scheffer (2012) e HAIG (2006), as principais respostas à epidemia foram estabelecidas, por um lado, através de campanhas e ações de sensibilização entre pessoas não infectadas em situações de vulnerabilidade ou com práticas de risco para as necessidades de adesão ao uso do preservativo, e por outro, através da administração medicamentosa entre infectados. Ambas as ações convergiam, de modo que se estimulou o uso de preservativo mesmo entre pessoas com sorologia diferenciada para controlar as possibilidades de mutação e resistência do vírus em contato com outros organismos.

A história da Aids e mais especificamente, das respostas à epidemia através da produção de antirretrovirais constitui um momento de especial relevância no debate sobre propriedade Intelectual. No contexto brasileiro, trata-se de uma história composta, por um lado, de uma tradição de acordos multilaterais para reconhecimento da propriedade Intelectual que remonta ao final do século 19 com a convenção de paris, e por outro, dos impasses do Estado na gestão da epidemia e as implicações mais amplas da manutenção de patentes de laboratórios estrangeiros sobre as políticas de saúde e acesso a medicamentos. A partir de uma ousada política externa de licenciamento compulsório de medicamentos considerados como de interesse social, o governo brasileiro, entre 1997 e 2001 consolidou uma importante política social de acesso universal a medicamentos para tratamento da Aids.

A despeito da exemplar tradição brasileira de manutenção dos acor- dos multilaterais da propriedade Intelectual dos quais é signatário desde a convenção de paris, em 1883, o licenciamento compulsório suscitou intensos debates e conflitos na arena política, sobremaneira junto a laboratórios e complexos da indústria farmacêutica do Norte global. As contendas e estratégias diplomáticas que resultaram no licenciamento compulsório de antirretrovirais teve como preâmbulo, ainda na década de 1980, um intenso investimento por parte do governo dos Estados unidos em tornar mais rígidas as legislações relativas à propriedade Intelectual junto a seus parceiros econômicos, entre eles o Brasil (Cepulani, 2005, p. 67). O objetivo central era o estreitamento e vinculação a uma agenda de interesses econômicos neoliberais marcados pelo direito à exploração de produtos e processos patenteados, o que por sua vez, produzia uma geografia do poder assimétrica, favorecendo os ganhos das grandes potências e dos centros produtores e difusores de tecnologia.

Como lembram Rodrigues e Soler (2009), a decisão de licenciamento compulsório gerida pelo governo brasileiro no sentido de tornar universal o acesso a medicamentos importantes para contenção da epidemia e garantia das condições de vida das pessoas vivendo com HIV foi fundamentada pela lei Brasileira da propriedade Industrial (Brasil, 1996), que em seu artigo 71 trata das situações de concessão compulsória de licenciamento quando observados quadros de interesse público ou emergência nacional. Os principais laboratórios fabricantes e detentores das patentes desses medicamentos, com sede nos Estados unidos, investiram em uma rodada de debates junto à Organização Mundial do comércio – OMc no sentido de consultar a organização a despeito dos efeitos da legislação brasileira frente aos acordos multilaterais previamente assinados e que garantiriam o controle dos laboratórios estrangeiros sobre os produtos em questão.

Ainda conforme Rodrigues e Soler (2009), a principal queixa se apresentava através do pagamento de royalties aos labora- tórios compulsoriamente licenciados, conforme se considerasse justo     e necessário tendo em vista a legislação brasileira prever a possibilidade de os preços “abusivos” praticados pelos laboratórios frente à situação de interesse nacional. A proposta do governo brasileiro era da universalização do acesso a medicamentos através da produção de genéricos das moléculas comercializadas pelos laboratórios e indústria farmacêutica. A situação era personificada através de um alinha- mento liberal e desenvolvimentista do presidente da república, à época, Fernando Henrique Cardoso, do ministro da Saúde, José Serra, bem como de agentes e intelectuais vinculados ao Ministério das relações Exteriores. Tal qual avaliado por Carlos Maurício Adrissone (2011, p. 190-191), a situação gerou impasses e conflitos diplomáticos complexos de repercussão na arena da política internacional, a exemplo da consulta dos Estados unidos à OMC.

A complexidade da situação era encerrada principalmente pelo grande número de atores envolvidos. Tratava-se de uma disputa não apenas entre laboratórios e governos nacionais. participavam da contenda se- tores civis e movimentos organizados, de pesquisadores e cientistas, do mercado de modo mais amplo. As relações envolvendo o acesso a medicamentos para sua distribuição no serviço público envolviam interesses e disputas não apenas políticas, mas de modo mais concreto disputas comerciais cujos efeitos se traduzem em dinâmicas sociais amplas que seguem desde a precarização do atendimento e garantia da saúde à população, negação de direitos fundamentais e de sobrecarga nos próprios sistemas de saúde. Adrissone ao refletir sobre os aspectos diplomáticos envolvendo a contenda sugere que: A ideia de que era necessário garantir um amplo acesso às populações dos países mais pobres e em desenvolvimento aos medicamentos contra o vírus HIV/Aids, a despeito das alegações das grandes corporações farmacêuticas transnacionais sobre supostas violações aos seus direitos de patentes, não foi motivada principalmente ou substancial- mente por indivíduos procurando satisfazer seus interesses egoístas. Ao contrário, foi amplamente compreendida como de interesse público, mais do que do privado (…). (Adrissone , 2011, p. 191).

Pairava assim uma dimensão que embebia tanto noções sobre responsabilidades e objetivo da produção de medicamentos, quanto às dimensões éticas da manutenção de patentes quando confrontadas com situações de grave vulnerabilidade e interesse coletivo e público. Ao avaliar o potencial do Brasil para a produção de antirretrovirais – Arvs, Fortunak e Antunes (2006) sinalizam para os altos custos pagos pelo Estado na compra de medicamentos junto a laboratórios estrangeiros, principalmente de medicamentos mais eficientes. A parte os custos, os autores insistem, permanece também um debate sobre as possibilidades nacionais de produção das moléculas licenciadas compulsoriamente, em termos de sua eficiência e infraestrutura. A contenda foi encerrada com uma pactuação entre o governo estadunidense e brasileiro no qual os Estados unidos solicitavam o arquivamento da queixa mediante o prévio aviso do governo brasileiro em situações futuras de licencia- mento compulsório. A questão, contudo, tem emergido recente- mente frente ao ambivalente quadro de crescimento da epidemia no Brasil em contraste com o processo histórico de construção de estratégias de controle, prevenção e tratamento por um lado, e por outro as recentes novidades da indústria farmacêutica no sentido de encontrar medicamentos mais efetivos, com menores efeitos adversos e, possivelmente, uma cura.

  1. Impactos das ocorrências de licenciamento compulsório de medicamentos para o tratamento de aids no Brasil

Em seus estudos para a redação de sua dissertação de mestrado sobre o impacto das ocorrências relacionadas ao licenciamento compulsório de patentes farmacêuticas ocorridos no Brasil, Sonia GAMA (2011) observou que os primeiros movimentos governa- mentais na direção da utilização dessa medida tiveram maior impacto no noticiário internacional – a primeira real ameaça de licenciamento compulsório no Brasil, ocorrida em 2001, foi destaque em 20 artigos da imprensa mundial especializada – do que a pró- pria declaração do licenciamento compulsório do Efavirenz anunciada em 2007. Quando se fala em licenciamento compulsório de patentes as reações são sempre cautelosas e as declarações são sempre reticentes, no entanto o resultado final da referida pesquisa levou a uma constatação: a de que a licença compulsória é uma ferramenta positiva, legalmente aceita e muito bem vista, inclusive pelos representantes do setor industrial.

Ao começo das pesquisas, a ideia seria a de que apenas se “confirma- ria” uma ideia preliminar de que as ocorrências de licenciamento compulsório no Brasil foram negativas, trouxeram elevados riscos para o desenvolvimento da indústria nacional bem como para as atividades econômicas do setor no país, visto a elevada expectativa de redução de investimentos diretos do setor no país e a grande repulsa que a utilização dessa ferramenta aparentemente causava, principalmente para a indústria. No entanto, uma análise profunda das ocorrências e de suas consequências (que de modo geral resultaram em acordos benéficos ao país), a realização das entrevistas e a compilação de resultados obtidos pela análise de uma matriz SWOT feita para o tema revelaram uma realidade surpreendentemente diferente: o licenciamento compulsório é muito bem aceito, é uma ferramenta jurídica legal e internacional- mente reconhecida, é bem visto – logicamente ainda com certa cautela – pelos participantes pertencentes ao grupo da indústria farmacêutica em geral, e teve impactos positivos para o país, principalmente quando se analisam os dados da pesquisa PINTEC 2008, na qual se observou um aumento significativo na quantidade de empresas que estão investindo em p&d em suas unidades brasileiras.

É certo que a PINTEC 2008 revelou também uma diminuição no número de empresas farmacêuticas atuantes no Brasil; no entanto acredita-se que essa redução se deveu predominantemente a estratégias comerciais, principalmente oriundas de inúmeras operações de fusão e aquisição entre empresas que tem ocorrido nos últimos tempos, além da instabilidade econômica internacional e nacional, ocorrida na insegurança da troca do governo brasileiro em 2003 e de duas crises nesta última década. portanto, não se pode considerar tal redução como um fato desencadeado pelas ocorrências de licencia- mento compulsório no país – em especial, pela declaração de licença compulsória do Efavirenz anunciada em 2007. ressalte-se também que, ao longo da pesquisa, observou-se que até mesmo as indústrias farmacêuticas têm buscado conhecer formas de utilizar o dispositivo de licença compulsória em benefício próprio.

Outro aspecto importante refere-se à força do Brasil no cenário internacional. pode ser ilusão e excesso de otimismo de GAMA (2011) mas, o fato de a Tailândia ter sido retaliada por um dos laboratórios que teve uma patente licenciada compulsoriamente naquele país, e o Brasil não ter sofrido nenhum tipo de retaliação, como reflexo da política brasileira em utilizar a ferramenta do licenciamento compulsório, podem ainda reforçar a ideia do crescente aumento da força do Brasil, sua importância no cenário internacional, seu potencial consumidor e econômico e, sobretudo, sua maturidade, posto ter tomado a decisão de declarar o licenciamento apenas quando todas as alternativas possíveis já haviam sido tenta- das. Mediante tal constatação, ousa-se afirmar: o licenciamento compulsório não teve, no cenário interno, um impacto tão negativo quanto se imaginava; revelou força política, determinação para negociação, coragem para encarar novos desafios, capacidade produtiva por parte dos laboratórios estatais e privados envolvidos na produção do medicamento licenciado e, sobretudo, a certeza de que a atitude do país não foi ilegal, leviana nem impensada. porém deve-se destacar que esta ação realizada pelo Brasil fez aflorar a fragilidade e deficiência da indústria farmacêutica nacional, principalmente se considerarmos as dificuldades apresentadas no processo de produção do medicamento licenciado. Infelizmente não se pode dizer o mesmo com relação ao cenário internacional, posto ter-se chegado à conclusão de que as notícias veiculadas pela imprensa internacional mostraram-se predominantemente tendenciosas e negativas para o Brasil.

  1. O começo do fim?

O ano de 2018 foi o aniversário de 37 anos da Aids. Ao avaliar os processos de transformação da doença nas quase quatro décadas, muitos cientistas cogitavam de maneira promissora a possibilidade de um fim próximo para a busca pela cura da doença. O período foi marcado ainda pela profusão de alternativas que envolviam desde medidas farmacológicas para evitar a contaminação, a exemplo da profilaxia pré-Exposição – PREP, substancialmente representada pelo medicamento Truvada, uma combinação de dois medicamentos antirretrovirais, de uso contínuo e que promete a possibilidade de não infecção, desde que administrado de maneira rígida e disciplina- da similar à terapia antirretroviral para pessoas vivendo com HIV.

Os últimos anos foram, ainda, marcados pelo lançamento de drogas como o, popularmente, conhecido “3 em 1”, um coquetel alternativo que, em uma cápsula de dose diária única, reúne três medicamentos adotados na Terapia Antirretroviral – TARV, favo- recendo a adesão ao tratamento e a sistematicidade da administração das drogas em comparação com as 24 drogas diárias do fármaco Zidovudina – AZT no início dos anos de 1990, por exemplo. O medicamento tem sido amplamente distribuído no sistema público de saúde para pacientes diagnosticados com HIV desde o mo- mento do diagnóstico. Além do “3 em 1”, uma novidade dos últimos anos foi a comercialização do Dolutegravir, um medicamento de última geração inibidor de integrasse, disponível no Brasil a partir de 2014 e liberado pelas agências sanitárias nos Estados unidos desde 2014 e na Europa desde 2015. A eficiência do Dolutegravir está na sua ação como inibidor de integrasse, o que implica uma ação que inibe a integração do vírus ao DNA humano, preservando a saúde das células e levando a uma rápida diminuição da carga viral.

Os últimos meses foram animados ainda pela notícia de experimentos para tratamento contínuo da Aids através de injeções bi- mensais, dispensando assim a ingestão diária de comprimidos. A alternativa está em fase de testagem entre humanos, assim como a PERP.

Em seu conjunto, esse arsenal de alternativas parece estar vincula- do também a uma nova estratégia da indústria farmacêutica na produção de alternativas à Aids. É possível sugerir como hipótese que esse espaço de ambivalência no quadro brasileiro e global da infecção, conciliado aos recentes lançamentos e a promessa de uma possível cura constituem uma espécie de gestão da informação como forma de atender às pressões e múltiplos interesses que constituem a arena de reflexões sobre a Aids. Nessa gestão da informação parece haver o sucessivo lançamento de alternativas que sucessivamente vão melhorando e tornando as anteriores obsoletas quando comparadas com as mais recentes novidades.

Em todo caso, a promessa de cura ainda é o que se anuncia: uma promessa. demanda cautela e observância frente às questões e implicações que suscita numa dimensão que diz respeito à pró- pria responsabilidade social dos cientistas para com a vida das populações infectadas, mas também dos limites éticos contidos em acordos sobre patentes, quando questionados por demandas de interesse público e vital.

  1. Considerações finais                                                                                                 

A Aids se constituiu no Ocidente como uma doença produtora de sensíveis transformações na relação entre as sociedades, os campos de poder sobre a vida e os regimes de conhecimento. Na tentativa de construção de alternativas para a morte de milhões de pessoas, as ciências biomédicas e a indústria farmacêutica alcançaram posições de prestígio numa dinâmica de circulação do poder que congrega nações, integra um mercado que atravessa e vincula todo o globo, bem como repercute na vida cotidiana de inúmeras pessoas.

De maneira mais própria, o debate sobre a produção de medicamentos e o licenciamento compulsório, ilustrado aqui pelo caso das tensões envolvendo os antirretrovirais e o acesso universal a esses medicamentos no Brasil serve de prisma para analisar como o quadro é composto por uma miríade complexa de setores, agentes e formas de agenciamento que constantemente se tencionam e disputam a manutenção e imposição de seus interesses.

No contexto disso que vem sendo chamado de “última década da Aids”, marcada pela promessa de uma cura próxima, parece ter sido elaborado por parte do mercado e da indústria farmacêutica uma sofisticada estratégia de contenção dos licenciamentos compulsórios por parte de Estados nacionais através de um contínuo lançamento no mercado de alternativas que vão pouco a pouco sofisticando-se e oferecendo melhores respostas para a infecção, o que constitui algo como uma tecnologia de gestão não apenas biomédica mas, também, da informação como forma de negociação com os inúmeros cruzamentos e agenciamentos que a arena da Aids constrói.

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Fonte Revista ABPI – nº 160 | Clipping LDSOFT