A inviabilização do licenciamento compulsório de patentes

Um substitutivo (Aécio Neves, PSDB-MG) ao PLS 12/21 (Paulo Paim, PT-RS, com substitutivo de Nelsinho Trad, PSD-MS) foi aprovado no último dia 7, na Câmara dos Deputados, por uma votação impressionante: 425 a 15, com quatro abstenções. Em tempos nos quais inexiste consenso sequer a respeito da lei da gravidade, causa espécie essa contagem. Assim, até o santo desconfia…

Para que, afinal, serve o substitutivo da Câmara ao PLS 12/21? A resposta mais afinada com seu texto final é relativamente simples: para dificultar, a ponto de inviabilizar, a concessão de licenças compulsórias no Brasil.

Como se sabe, a redação atual da Lei 9.279 e o Decreto 3.201/99 autorizam e possibilitam o licenciamento compulsório de patentes para atender a situações de emergência nacional e interesse público, inclusive para favorecer o desenvolvimento tecnológico ou socioeconômico do país. Tanto é assim que já houve a concessão de tal tipo de autorização por meio do Decreto 6.108/07, referente ao medicamento Efavirenz. Nunca houve — ressalte-se — qualquer uso abusivo do instrumento.

Por que, então, alterar a lei vigente?

A primeira resposta aponta a intenção de ajustar a legislação brasileira à emenda do TRIPs/OMC, que incluiu, por meio do artigo 31 bis, a possibilidade de utilizar licenças compulsórias não apenas para o atendimento do mercado interno, mas para a exportação de produtos farmacêuticos a países em desenvolvimento ou de menor desenvolvimento relativo. Não obstante, o próprio PLS 12/21, no texto aprovado pela Câmara dos Deputados, comprova não ser esse o caso: o proposto artigo 71-A inclui uma exigência inexistente no TRIPs — ser a licença condicionada a “razões humanitárias” — e ignora a limitação, nesse mesmo tratado, a medicamentos. Ou o texto é muito mal elaborado, ou é sub-reptício. Em qualquer caso, não há compatibilidade com uma finalidade central de adequação ao artigo 31 bis do TRIPs/OMC. Além do que, fosse para isso, não haveria sentido em propor uma modificação tão ampla do sistema atual de licenciamento compulsório.

Uma segunda resposta seria a seguinte: para dar ao Legislativo instrumentos suficientes para exigir do Executivo uma atuação consistente com as necessidades do combate à pandemia da Covid-19, ou outras que possam vir a ocorrer no futuro. Uma análise dos PLCs 1.320/20 e 1.462/20, de autoria do deputado Alexandre Padilha (PT-SP) e outros, bem como do texto original do PLS 12/21, de autoria de Paulo Paim (PT-RS), aponta nesse sentido. Entre outros aspectos, destacam-se: a) a possibilidade de utilizar declarações da Organização Mundial da Saúde (OMS) como suficientes para configurar a emergência; b) substituir o protagonismo do Executivo pela colaboração possível do Legislativo para o enfrentamento das emergências; e c) chegar até mesmo a contrariar o regime do TRIPs/OMC.

O que se aprovou recentemente na Câmara, porém, sequer é uma caricatura do projeto de Paulo Paim (PT-RS), pois esta guardaria alguma semelhança com o texto original. Não restou sequer uma vírgula. Depois de passar pelos substitutivos de Nelsinho Trad (PSD-MS), aprovado no Senado, e de Aécio Neves (PSDB-MG), aprovado na Câmara dos Deputados, o PLS 12/21 se concentra em instituir um procedimento burocrático complicado, estruturado de maneira a dificultar a análise e concessão das licenças. Para isso, propõe prazos exíguos, exigências complexas e a ausência de qualquer procedimento de urgência, para quando a resposta não pode esperar um percurso mais demorado.

Portanto, não se delineou, por enquanto, uma explicação clara dos objetivos da presente alteração legislativa. A imensa convergência das forças políticas na Câmara é de impressionar e exige uma análise das alterações.

Não cabe, aqui, realizar uma análise do histórico de aprovação. Porém, vale a pena mencionar duas diferenças importantes entre o substitutivo Trad e o substitutivo Neves: 1) o primeiro estabelecia um prazo de 30 dias para o Executivo federal editar uma lista de itens a serem licenciados compulsoriamente no contexto da pandemia da Covid-19, incluindo obrigatoriamente as vacinas contra o SARS-CoV-2 e o medicamento Remdesivir, isso foi extirpado na Câmara dos Deputados; e 2) o substitutivo Neves, mais moderado e razoável, previa deveres anexos quanto ao know-how, tão necessário para que expedientes biotecnológicos complexos possam ser absorvidos e produzidos pelo licenciado compulsório, também afastado no texto de Neves.

Por outro lado, um dos problemas já conhecidos do texto do artigo 71 da Lei de Propriedade Intelectual vigente — a necessidade de comprovação de que o titular da patente ou seu licenciado não atendem ao enfrentamento adequado da situação catastrófica — foi mantido no substitutivo Neves. Em outras palavras, o PLS em questão não afasta tal exigência ou realoca o onus probandi para que recaia sobre o titular da patente, o que se justificaria por ser este quem dispõe de melhores informações e meios para comprovar a plena satisfação das necessidades existentes. O texto aprovado pela Câmara dos Deputados mantém um obstáculo burocrático injustificável ao já complexo instrumento da licença compulsória.

Há mais problemas e o resultado final é um projeto dedicado a tornar extremamente difícil o licenciamento compulsório no Brasil, especialmente em situações de acentuada urgência. Para um resumo, alguns pontos relevantes:

a) O projeto institui um prazo de 30 dias contados da declaração de situação de emergência nacional ou internacional para que o Executivo apresente uma lista das tecnologias potencialmente úteis;

b) Apresentada tal lista, abre-se prazo de outros 30 dias, prorrogável por igual período, para a efetiva concessão das licenças;

c) Importante: não há qualquer previsão a respeito dos efeitos de tais prazos. Do ponto de vista da proteção dos direitos dos titulares das patentes e licenças, é de se supor que, encerrados tais prazos sem a efetiva apresentação da lista, ou da concessão da licença, fica vedado o licenciamento compulsório de qualquer tecnologia relacionada à situação de emergência em tela;

d) Há inclusão de várias exigências, inexistentes no Decreto 3.201/99, que dificultam o caminho para a concessão das patentes, sobretudo por meio de estratégias procrastinatórias capazes de levar ao esgotamento dos prazos;

e) Ocorre uma importante inversão: no regime atual é possível licenciar compulsoriamente, inclusive com estabelecimento da remuneração e prazo, antes de determinar quais serão os beneficiários da receita. No regime previsto, a licença compulsória só poderá ser concedida se os produtores comprovarem “capacidade técnica e econômica”. É bastante difícil fazer tal comprovação sem a determinação do prazo da licença e de seu padrão de remuneração, pois o produtor não consegue verificar a possibilidade de amortização dos gastos em capital fixo sem esses parâmetros. O produtor deveria demonstrar seu interesse mediante o aporte de avaliações técnicas e econômicas prévias, o que implica custos para a participação do processo, sem ter qualquer expectativa concreta a respeito da licença. A combinação entre incerteza e custos prévios suportados pelos produtores tende, por motivos óbvios, a afastar interessados nas licenças;

f) Os parâmetros para a determinação da remuneração do titular também foram alterados de modo a incluir expressamente a estimativa dos investimentos para a produção e o preço de venda do produto no mercado nacional, excluindo-se o critério do preço dos similares, posto pelo decreto ora vigente. Essa substituição transforma o preço eventualmente cobrado pelos detentores da patente no único parâmetro mercadológico interno, favorecendo o estabelecimento de remunerações que não excluam valores de monopólio;

g) A matéria do PLS12/21 deve ser tratada por decreto, não por lei. Imagine-se que, como não é difícil de prever, a aplicação dos procedimentos e condições ora propostas torne as licenças compulsórias virtualmente inviáveis. O único caminho para recuperar sua viabilização seria a promulgação de nova lei. Detalhes do processo de aprovação não deveriam ser matéria de lei;

h) Por fim, mas não com menor importância, o regime de urgência previsto pelo Decreto 3.201/99, artigo 7º, possibilita o licenciamento sem a constatação da impossibilidade do titular atender a situação de emergência e sem o detalhamento das condições da licença, sem contar, por óbvio, com as múltiplas exigências do PLS 12/21. O projeto, por seu turno, extingue tais possibilidades e prevê, para casos de extrema urgência um procedimento expedito e simples: o licenciamento por meio de lei federal, restrito a emergência de saúde pública e com vigência limitada à duração da situação de emergência (conforme artigo 71, §15).

Como se explica, então, a ampla base de aprovação do PLS 12/21 na Câmara?

Para os interesses as grandes empresas farmacêuticas internacionais e aqueles que os defendem no Congresso Nacional a resposta é bastante simples. É certo que o modelo atual vem sendo utilizado com bastante parcimônia, contando com uma única licença compulsória — Efavirenz — em seus cerca de 25 anos de vigor. Importante lembrar, porém, que a possibilidade de licenciar compulsoriamente é um forte elemento de pressão, sobretudo em um país onde há parque industrial e tecnológico que permite fabricar os produtos que utilizam tais patentes. Reduzida tal possibilidade, corta-se o braço da alavanca.

Difícil é compreender porque os legisladores comprometidos com o povo, a indústria nacional e a manutenção de meios para a proteção da saúde pública vêm apoiando o PLS 12/21 — no texto modificado pela Câmara dos Deputados — com tanta veemência. Duas explicações possíveis: 1) ignorância: dadas as condições da aprovação, haveria faltado tempo para analisar detidamente o conteúdo do projeto; ou 2) temor: quem em véspera de ano eleitoral votaria contra uma lei alardeada na imprensa como a salvação da lavoura?

Porém, o caminho do fortalecimento da nação e de seu povo jamais serão pavimentados por ignorância e medo.

Por Gilberto Bercovici e José Augusto Fontoura Costa


Fonte: Conjur | Clipping: LDSOFT
Foto: Google