A ANVISA e a Constituição

eve acontecer hoje no STF o julgamento da ADI 4874, que discute o poder normativo das agências reguladoras, uma questão antiga, ainda não equacionada. Desde que criadas, diz-se que as agências gozam de amplo poder normativo. Isso é correto. Mas qual é o limite? O julgamento pode ajudar a responder.

Na mencionada ADI, questiona-se se a Lei 9782 conferiu à ANVISA autorização para proibir, em caráter normativo, a fabricação e a comercialização de produtos e insumos. Foi essa a interpretação que a agência adotou quando editou a RDC 14/2012, que vedou, no território nacional, a fabricação e a comercialização de cigarros com ingredientes, causando impactos diretos sobre toda uma cadeia econômica, além do próprio erário, que deixa de arrecadar tributos de empresas que licitamente vendem produtos fumígenos e competem com um crescente mercado ilegal. Essa grave decisão poderia ter sido adotada pela ANVISA? Não.

A Administração, determina a Constituição, não pode agir sem respaldo em lei. Daí a necessidade de se buscar na Lei 9782 um possível fundamento para o banimento. Eis o problema: o único artigo que trata da proibição de produtos e insumos – o art. 7º, XV – não justifica a RDC. Segundo o dispositivo, compete à Agência “proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente ou de risco iminente à saúde”. Repare-se a estrutura da regra: ela remete a um fato antecedente – violação da legislação ou o risco iminente à saúde – e aponta uma medida consequente: a proibição de se fabricar ou comercializar o produto ou insumo. A proibição é efeito de uma causa anterior; um gravame concreto de polícia sanitária aplicado se e quando caracterizadas as hipóteses legais.

A ANVISA inverteu essa lógica. Fez da consequência o pressuposto. Estabeleceu proibição em tese que, segundo o art. 11 da RDC, se descumprida, constituirá “infração sanitária, nos termos da Lei n. 6437”, que prevê rol de sanções que vão desde advertência e multa ao cancelamento de registro do produto e da autorização para funcionamento da empresa. Há diversos problemas nisso.

Primeiro: há inconstitucional afronta aos limites do poder regulamentar. O art. 7º, XV, da Lei 9782 não serve de fundamento. Trata-se de competência executiva e cautelar de polícia sanitária, e não um cheque em branco para o banimento genérico de produtos vendidos há décadas. A agência deve, diante de riscos graves e iminentes, proibir um produto que esteja em desacordo com a legislação sanitária, cautelar e concretamente; mas não pode proibir o comércio genérica e abstratamente. Banir produtos e insumos é medida gravíssima, que só pode ser veiculada por lei, em respeito à liberdade de iniciativa, cf. o art. 170 da Constituição.

Segundo: há um problema de bis in idem. A RDC, ao tempo em que fez da proibição o pressuposto normativo, aludiu genericamente às penalidades da Lei 6437. No rol do referido diploma encontram-se penalidades variadas, como o cancelamento do registro do produto ou até da empresa. Logo, a empresa poderá até ser punida com a proibição de fabricar e comercializar o produto se descumprir a proibição de fabricar e comercializar o produto (?!). A tautologia evidencia a falta de coerência lógica.

Terceiro: a RDC fez do descumprimento de seus preceitos um tipo sancionatório inovador, com remissão genérica à Lei 6437, que arrola nada menos do que 42 infrações. Não há como saber em qual delas se enquadra a proibição. Esse é um vício grave de falta de tipicidade. I.e., de ausência de predeterminação normativa quanto à conduta passível de punição e sobretudo quanto à consequência a que se sujeita o administrado, o que gera, ainda, inconstitucional insegurança jurídica.

A ANVISA precisa ser conformada à Constituição. Isso não a enfraquece; mas legitima sua importante missão institucional. A sessão do dia 19 já chega tarde.

Alice Voronoff – Doutoranda em Direito Público pela UERJ e advogada no Rio de Janeiro e Brasília. Sócia de Binenbojm & Carvalho Britto Advocacia. Integrante da equipe de Gustavo Binenbojm, Professor Titular de Direito da UERJ, advogados da ABIFUMO.

André Cyrino – Doutor em Direito Público pela UERJ, LL.M por Yale e advogado no Rio de Janeiro e Brasília. Sócio de Binenbojm & Carvalho Britto Advocacia. Integrante da equipe de Gustavo Binenbojm, Professor Titular de Direito da UERJ, advogados da ABIFUMO.

Rafael Koatz – Doutor em Direito Público pela UERJ e advogado no Rio de Janeiro e Brasília. Sócio de Binenbojm & Carvalho Britto Advocacia. integrante da equipe de Gustavo Binenbojm, Professor Titular de Direito da UERJ, advogados da ABIFUMO.

Fonte: JOTA