Aplicação do direito autoral na moda

Paris é uma cidade que respira arte, cultura e beleza. Além de todos esses atributos, ainda é a capital da moda e do luxo e basta passear por uma das três principais avenidas do Triangle D’Or – Champs-ÉlyséesMontaigne ou George V – para perceber a importância deste segmento de mercado não só para a economia, mas igualmente para o patrimônio cultural da cidade.

A indústria da moda possui tanta relevância para a França que a Haute Couture é muito mais que sinônimo de luxo e sofisticação. Trata-se de um setor organizado pela Chambre Syndicale de la Haute Couture Parisienne (Câmara Sindical de Alta Costura Parisienseque goza, inclusive, de proteção jurídica. Com tantos referenciais é de se entender que a legislação francesa tenha dedicado à moda um lugar de destaque.

Entretanto, tal explicação pode residir tão somente no fato de que a moda faz parte de uma tradição da qual a França tenha grande orgulho e cuja construção tenha se solidificado ao longo de alguns séculos. Se a harmonia arquitetônicai da cidade que conhecemos atualmente se deve à Napoleão III, o savoir-faire de moda e luxo deve-se ao Rei Luiz XIV e ao seu ministro das finanças Jean-Baptiste Colbert.

“No reinado de Luis XIV, a ideia de lançar modos e modas já havia sido pensada e o Castelo de Versalhes foi o epicentro divulgador das sutilezas do requinte, da sofisticação exacerbada, do fausto e do esplendor para todas as cortes europeias. Nesse período, a França foi pioneira em ditar a moda para toda a Europa através da corte de Versalhes.”ii

“O plano de Colbert era simples: primeiro assegurou-se de que todos os artigos que Luís XIV considerasse essenciais para promover sua imagem de o mais rico, sofisticado e poderoso monarca da Europa fossem produzidos na França e por trabalhadores franceses; depois, certificou-se de que o maior número de pessoas possível seguisse servilmente os ditames do Rei Sol e adquirisse os mesmos artigos de luxo produzidos na França que o rei exibia em Versalhes.”iii

Ao contrário do que ocorria na França, no Brasil a indústria têxtil tardou a se desenvolver. Durante 23 anos, em especial em razão do Alvará de 1785, a fabricação de tecidos nobres e de qualidade fora proibida no Brasil, proibição esta que perdurou até 1808.

Em um país recém-descoberto e destinado a servir de colônia de exploração, esse curto espaço de tempo pode ter sido crucial para o desenvolvimento de uma cultura de valorização à produção nacional. Se por um lado, historicamente, o Brasil teve mais dificuldades em se aprimorar na indústria têxtil, atualmente o cenário hostil parece ter sido superado. Nosso país é considerado a maior cadeia têxtil completa do Ocidente, sendo autossuficiente na produção de algodão, o segundo maior empregador da indústria de transformação e o quarto produtor de malhas do mundo. Nossa semana de moda está entre as cinco maiores. Além disso, designers brasileiros têm feito enorme sucesso no exterior com produtos como moda praia e jeanswear.iv

O objetivo deste pequeno artigo é tão somente o de explorar as diferenças existentes entre as disposições do direito autoral francês quando comparado à disciplina adotada pela legislação brasileira. Portanto, não se trata de um estudo de Direito Comparado, uma vez que não foram realizados o confronto dos sistemas jurídicos brasileiro e francês, bem como da legislação, jurisprudência e doutrina.

Levando em consideração a experiência francesa e a opção pelo ordenamento jurídico francês se justifica em razão do know-how que a França tem neste segmento, verificamos que a legislação francesa dispõe de previsão expressa para artefatos da indústria de moda no artigo 112-2 do Code de la propriété intellectuelle, abaixo transcrito:

“Les créations des industries saisonnières de l’habillement et de la parure. Sont réputées industries saisonnières de l’habillement et de la parure les industries qui, en raison des exigences de la mode, renouvellent fréquemment la forme de leurs produits, et notamment la couture, la fourrure, la lingerie, la broderie, la mode, la chaussure, la ganterie, la maroquinerie, la fabrique de tissus de haute nouveauté ou spéciaux à la haute couture, les productions des paruriers et des bottiers et les fabriques de tissus d’ameublement.”

No tocante à Lei 9610/98, não encontramos idêntico tratamento e se por um lado falta previsão, por outro também não há qualquer espécie de vedação. Diante do silêncio, nossos tribunais vêm aceitando a aplicação do direito autoral neste setor, especificamente no tocante a joias como forma de coibir a concorrência parasitária e a conduta antiética de se aproveitar da fama e do prestígio de grifes renomadas na hora de confeccionar novos produtos. É importante ressaltar que em relação a estampas é possível encontrar proteção com base no artigo 7º, VIII que abrange as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética da lei 9.610/98. Outro ponto a considerar é a surpreendente decisão judicial no caso Hermès x 284, em que se estendeu a aplicação do direito autoral ao design de uma bolsa. Para eliminar a incerteza da proteção destes artigos através da lei de direitos autorais, o ideal seria que a lacuna hoje existente fosse preenchida, o que não significa dizer que nosso ordenamento jurídico não tenha condições de oferecer proteção para este segmento.

“Diferentemente dos Estados Unidos, no Brasil existe farta legislação que regulamenta toda a cadeia de produção e comércio de moda, mas não é difícil ler em jornais e revistas especializadas uma repetição do discurso americano que reivindica uma legislação específica demonstrando surpreendente ignorância ou até incompreensão sobre o funcionamento do nosso sistema de patentes, de marcas e de autoria. Também é importante dizer que nossa legislação trabalhista, tributária e até constitucional não exclui nenhum setor produtivo, tampouco o da moda que trataremos aqui.”v

O fato é que a inclusão da moda na lei de direitos autorais, não significa uma maior facilidade na obtenção deste tipo de tutela. No direito autoral, o registro é dispensável, devendo, porém, o autor possuir provas da titularidade de seu design original em caso de litígio, bem como da data de sua criação. Logo, a originalidade é requisito fundamental para que o autor tenha o reconhecimento do seu direito, sendo certo que ambas as legislações, francesa e brasileira, trazem idêntica previsão quanto a esse aspecto. Não se pode esquecer que tanto no Brasil quanto na França, a proteção da moda poderia ser realizada através de outra modalidade de tutela jurídica, no caso, o desenho industrial. É evidente que a originalidade requerida pela lei 9.610/1998 é mais frágil que a prevista no art. 95 da Lei 9.279/1996.

Ao buscar julgados franceses como uma referência, dois me chamaram a atenção, justamente pelo fato de que as autoras acabaram vencidas por questões probatórias. Os casos envolvem LIBERTY RETAIL e H & M, que disputavam a titularidade de um padrão de tecido, e ZADIG ET VOLTAIRE e BEST MOUNTAIN em litígio por um modelo de camiseta denominado “tunisiano”. Em ambos os casos, as autoras não lograram êxito em suas demandas ora por falta de prova quanto a titularidade, ora por não conseguir comprovar a originalidade do produto.

A inglesa LIBERTY RETAIL LIMITED, renomada por criar tecidos com motivos florais bem característicos, cuja atividade é a criação e a comercialização de produtos de luxo e de moda exportando esses tecidos para o mundo todo e, em particular, para a França, reivindicou direitos autorais sobre as estampas “Claire-Aude” e “Bourton”.

Tendo constatado, em abril de 2009, que modelos de sapatilhas, sapatos de plataforma e vestidos – comercializados em seis lojas da H & M em Paris reproduziam padronagens suas, ingressou com ação judicial. Na sentença datada de 27 de janeiro de 2012, o TGI (Tribunal de Grande Instance, na denominação original do francês) de Paris declarou improcedente a alegação de contrafação, uma vez que a sociedade empresária não provou ser titular dos direitos autorais dos padrões de tecidos em litígio. Em recurso, a LIBERTY RETAIL argumentou que as estampas foram criadas, respectivamente em 1966 e 1975, por funcionários ou designers da LIBERTY FABRIC no âmbito do seu contrato de trabalho. E ainda que as padronagens em questão foram divulgadas e anteriormente comercializadas por esta, apresentando como provas: vi

– “catálogo de tecidos Liberty” a partir da captura de tela do endereço eletrônico www.liberty.co.uk, onde consta apenas a data da sua impressão em 2012, sem fornecer qualquer indicação da identidade dos supostos criadores dos tecidos reivindicados, nem a existência de quaisquer contratos de trabalho entre os referidos criadores e a empresa LIBERTY RETAIL;

– um contrato de cessão de direitos autorais datado de 18 de outubro de 2012 com a LIBERTY FABRIC e uma carta de seu CFO (Chief Financial Officer), o que não justificava a existência desses direitos sobre os tecidos reivindicados.

Como desfecho o Tribunal de Apelação de Paris não considerou que as provas produzidas comprovaram o processo de criação dos padrões reivindicados, e portanto, a titularidade do direito autoral. A originalidade não foi contestada.

A prova da originalidade dos modelos é, por outro lado, o que faltou à ZADIG E VOLTAIRE que denunciou a BEST MOUNTAIN, por violação de direitos autorais sobre determinadas camisetas. Porém, também não logrou êxito em sua ação e o Tribunal de Cassação de Paris, a mais alta corte da jurisdição francesa, destacou que a sociedade empresária não tinha conseguido provar que o seu modelo de camiseta fora comercializado anteriormente à demandada, na medida em que juntou como prova apenas os recibos de salários de seus empregados. vii

O conceito de originalidade não está claramente definido em nenhuma das legislações aqui comparadas, o que demonstra ainda mais a fragilidade de tutela de produtos de moda e luxo através do direito autoral, independentemente de haver ou não previsão expressa na lei. Um dos grandes desafios no emprego da legislação sobre direito autoral para a proteção destes artigos está relacionado à dificuldade de precisar quando, de fato, estamos diante de um design original.

Não se pode esquecer que a moda é uma criação influenciada pelo tempo, pelos costumes, por movimentos sociais e artísticos de uma época, e que as coleções são desenvolvidas com base em estudos de tendências, que como o próprio nome diz, são típicas de um momento e, portanto, poderiam ser adotadas por muitos estilistas em uma mesma temporada. Talvez por este motivo, haja tanta polêmica entre os próprios designers quanto ao reconhecimento da moda enquanto arte.

Uma segunda questão a ser enfrentada diz respeito ao tempo de proteção, que levando em consideração a sazonalidade com que a moda é lançada e produzida, se torna extremamente excessivo. Basta lembrar que de acordo com estudos de mercado, a macrotendência tem duração, aproximada, de 5 a 10 anos. Porém, é importante destacar que na legislação francesa o tempo de proteção é exatamente igual ao nosso, com algumas exceções. Mas no geral o prazo é idêntico, ou seja, 70 anos contados a partir da morte do autor.

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ihttps://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160203_vert_cul_criador_paris_lab

ii BRAGA, João; PRADO, Luís André do. História da moda no Brasil: das influências às auto referências. São Paulo: Pyxis Ed., 2011.

iii DEJEAN, Joan. A essência do estilo: como os franceses inventaram a alta-costura, gastronomia,

… a sofisticação e o glamour. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011

v MARIOT, Gilberto. Fashion Law- A moda nos tribunais. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2016.

vi Tribunal de Cassação de Paris, Polo 5, Câmara 2, 6 de setembro de 2013, RG n°12/12391

vii Tribunal de Cassação, Primeira Câmara Civil, 2 de outubro de 2013, recurso n°12-21.095

FABIOLA MELO MIGUELETE – advogada regularmente inscrita na OAB/RJ há 10 anos com atuação em empresas de grande porte e atualmente cursando a extensão em Fashion Law do Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Fonte Jota.info | Clipping LDSOFT