Brasil questiona requisitos para patente de cura da hepatite C

Se o país negar a patente no futuro, o medicamento de alto custo pode ter preços reduzidos

O  Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), o órgão do governo brasileiro encarregado de analisar pedidos de patentes, divulgou um parecer técnico rejeitando alguns dos requisitos de patenteabilidade do medicamento que, combinado a outras drogas, elevou as chances de cura da hepatite C para 90%. A decisão não é final e não significa que a patente foi recusada. Mas pode embasar, no futuro, a rejeição do pedido. Quando isso acontece, outras empresas também podem fabricar e vender o medicamento, geralmente, a preços menores. No caso do tratamento para hepatite C, o acesso à droga, chamada sofosbuvir – ou Sovaldi, seu nome comercial –, é uma questão de saúde pública mundial. O alto preço da medicação, que já chegou a custar US$ 1.000 por comprimido nos Estados Unidos, impede a popularização do tratamento, que ganhou o apelido de “destruidor de orçamento” dos governos.

O parecer faz parte do processo de análise e indica que o técnico do Inpi não reconheceu alguns dos requisitos apresentados pela fabricante, a empresa americana Gilead Sciences, como passíveis de proteção comercial. No documento, a descrição do processo químico para chegar à droga foi considerada inadequada por não estar escrita de “maneira clara e precisa”. Alguns requisitos de atividade inventiva também não foram reconhecidos no parecer. A Gilead tem 90 dias para responder às críticas levantadas no parecer. E, ainda que depois disso a patente chegue a ser recusada, a fabricante também pode recorrer.

O documento foi considerado por entidades que defendem a popularização de tratamentos farmacêuticos como um sinal de que há mais espaço para a negociação de preço do governo brasileiro com a empresa fabricante. “Esperamos agora que o governo utilize esta decisão para revisar o contrato com a Gilead”, afirma Pedro Villardi, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), entidade que estuda o impacto nas patentes na saúde pública. “Deve exigir uma redução imediata dos preços para os menores patamares internacionais e trabalhar para incluir fornecedores genéricos nos próximos processos de compra.”

Desde setembro de 2015, o governo brasileiro passou a distribuir o novo tratamento na rede pública, mas primeiro para apenas alguns pacientes que atendiam a requisitos como gravidade do quadro. Em julho, o Ministério da Saúde anunciou que todos os pacientes diagnosticados serão incluídos na cobertura, independentemente do grau de avanço da doença. Até o primeiro semestre de 2018, serão incluídas as pessoas com grau 2 de comprometimento do fígado. A partir daí, pacientes com grau 1 e 0. O preço do tratamento, porém, ainda representa um problema para o escasso orçamento da saúde.

Na última compra do medicamento, em agosto, o Ministério da Saúde pagou R$ 3.700 por cada tratamento com sofosbuvir (12 semanas). O valor é mais alto que o praticado em outros países. A empresa fabricante, a Gilead, diz adequar os preços de seu medicamento à realidade do país e ao número de pessoas infectadas. Por isso, em países com menor renda, como a Índia, autorizou a produção de genéricos – e o custo despencou. Lá, o tratamento de 12 semanas com o sofosbuvir genérico custa cerca de R$ 1.000. O Brasil e outros países de renda média – segundo padrões do Banco Mundial – não estavam entre esses possíveis compradores. A Gilead afirma que a decisão de restringir o acesso aos genéricos aos países de renda média é consequência das normas de seu programa de acesso.

Se a patente for negada no Brasil, o tratamento pode ficar mais acessível. Uma estimativa do GTPI calculou que seria possível tratar todos os pacientes com hepatite C no Brasil até 2019. Para isso, o governo brasileiro teria de pagar o preço do sofosbuvir genérico. Se continuar pagando pelo preço da última compra, R$ 270, serão necessários 47,7 anos para tratar 80% das pessoas com o vírus, a meta da Organização Mundial da Saúde. Nesse caso, só em 2063 todos teriam tido acesso ao tratamento. A estimativa mais atual calcula que 1,6 milhão de brasileiros tenham o vírus, mas a maior parte não sabe porque a doença é silenciosa. Segundo o Ministério da Saúde, até abril deste ano, 55 mil pessoas já tiveram acesso ao medicamento.

O sofosbuvir, aprovado nos Estados Unidos em 2013 e no Brasil em 2015, mudou a história da hepatite C. Aumentou significativamente as chances de cura, encurtou o tratamento e reduziu os efeitos colaterais. Um dos protocolos antigos mais usados consistia em injeções semanais de interferon peguilado, que provocava fortes efeitos colaterais, como irritabilidade, dores musculares e indisposição, além de três a cinco comprimidos de ribavirina. O protocolo durava entre 24 e 72 semanas e, ao fim, apenas cerca de 40% dos pacientes se curavam. Muitos repetiam os ciclos, com algumas variações na medicação, várias vezes ao longo da vida. Não raro, boa parte desistia de se tratar, algo preocupante porque continuava como transmissor em potencial do vírus. Com o sofosbuvir, combinado com outras drogas modernas, como o simeprevir e o daclatasvir, as chances de cura pularam para 90%, num tratamento que dura entre três e seis meses e tem menos efeitos colaterais.

Um estudo feito por integrantes da Organização Mundial da Saúde analisou os preços do sofosbuvir em 30 países, de nações ricas, como os Estados Unidos, a países de renda baixa, como a Índia, passando pelos de renda média, como o Brasil. O levantamento, publicado em 2016 na revista científica Plos ONE, chegou à conclusão de que os preços são inacessíveis no mundo todo, mesmo levando em conta os diferentes níveis de riqueza entre os países. A Turquia e a Polônia, por exemplo, sofrem com os preços altos para a realidade da população. Na classificação dos pesquisadores, o Brasil é considerado um dos países que conseguiram alguns dos melhores preços – não que isso signifique exatamente valores baixos. “Os preços atuais ameaçam a sustentabilidade do sistema de saúde e impedem que muitos países consigam fornecer o tratamento em larga escala”, escreveram os autores.

Fonte: Época