Cade avançou no desenvolvimento da política de defesa da concorrência

Introdução
O Cade não passou imune ao cenário político nacional. O órgão aguarda, desde a saída de seu ex-presidente, em maio, a nomeação de um novo líder, o que se torna ainda mais relevante com a iminente vacância também de uma das cadeiras de conselheiro no tribunal, com o término do mandato do presidente-interino Marcio de Oliveira, em janeiro.

Não obstante, o Cade foi capaz de avançar no desenvolvimento da política de defesa da concorrência, demonstrando a solidez do órgão e seu notável nível de autonomia institucional. Em 2016, foram publicados guias e resoluções que ajudam a criar maior segurança e previsibilidade aos administrados. Passos importantes foram dados na investigação de casos complexos, como os desdobramentos da operação “lava jato”, e debates relevantes foram travados no âmbito do controle de estruturas.

Guias e resoluções
2016 foi marcado pela elaboração e publicação de diversos guias de análise pelo Cade. Ao consolidarem a memória institucional do conselho e indicarem as melhores práticas, esses guias procuram dar segurança e previsibilidade para o mercado e constituem passo relevante no desenvolvimento institucional do Cade.

Guias importantes foram lançados: (i) sobre TCCs, focado em casos de cartel, com orientações a respeito dos procedimentos a serem seguidos por servidores e agentes privados na negociação desse tipo acordo; (ii) sobre leniência antitruste, que dá maior transparência e previsibilidade às regras e procedimentos relativos às negociações dos acordos de leniência no âmbito do Cade; (iii) sobre compliance, detalhando as medidas recomendadas para um programa de compliance antitruste; e (iv) sobre Atos de Concentração Horizontal, que, além de estruturarem as etapas de análise dos atos de concentração, trazem inovações importantes, como análises de poder de portfólio, de concorrência potencial, de eliminação de mavericks, entre outros aspectos.

De modo similar, procurando conferir maior previsibilidade, o Cade proferiu algumas resoluções relevantes em 2016. Essas resoluções disciplinam temas centrais para a defesa da concorrência e, como os guias, constituem importante evolução institucional. A Resolução 16, por exemplo, oficializa o prazo de 30 dias para análise, no âmbito da superintendência-geral, de atos de concentração com base em procedimento sumário. Trata-se de demonstração clara da capacidade do Cade de prover respostas aos casos mais simples em tempo adequado, gerando maior segurança ao ambiente de negócios.

A Resolução 17, por sua vez, procura, a partir da experiência adquirida nos últimos dois anos de aplicação da Resolução 10 de 2014 (por ela revogada), aperfeiçoar os critérios para definição da obrigatoriedade de notificação de contratos associativos referidos pelo artigo 90, IV, da Lei 12.529/2011. De fato, a aplicação da extinta Resolução 10 vinha gerando uma série de questões que se traduziam em incerteza no ambiente de negócios. Atento a tais complexidades, o Cade procura agora aperfeiçoar a disciplina regulatória aplicável. Por fim, a Resolução 18, ao alterar a Resolução 3 de 2012, confere ao Cade maior flexibilidade no cálculo de penas em respeito ao princípio da proporcionalidade.

Discussões judiciais
O Poder Judiciário tem sido cada vez mais chamado a discutir matérias concorrenciais e decisões do Cade. Em ação anulatória de decisão do Cade ajuizada pela Tecondi Margem Direito S/A, o Superior Tribunal de Justiça não conheceu de Recurso Especial da autarquia contra decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que admitiu a competência das varas federais em todo território nacional para o processamento de ações contra o Cade. Confirmou-se, assim, o entendimento de que tal competência não cabe unicamente à Seção Judiciária do Distrito Federal.

Na Seção Judiciária do Distrito Federal, magistrado da 4ª Vara Federal deferiu antecipação de tutela na ação anulatória promovida pela Tecon Salvador S/A para suspender os efeitos de decisão condenatória do Cade que impôs sanções à empresa em decorrência de cobrança da taxa pelo serviço de segregação e entrega de contêineres (THC2 – Terminal Handling Charge 2). O magistrado reafirmou entendimento consignado na jurisprudência do TRF da 1ª Região de que a cobrança da referida taxa não era ilegal e não poderia, por isso, ser considerada uma infração à ordem econômica a ser condenada pelo Cade.

Combate a cartéis
Em 2016, o Cade prosseguiu com seus contínuos esforços para fortalecimento da política de combate a cartéis. Além do Guia Sobre o Programa de Leniência Antitruste e o Guia Sobre TCCs para Casos de Cartel, já mencionados aqui como indicação do desenvolvimento institucional do Cade, a atuação em casos concretos reiterou o foco da autarquia no combate a cartéis. Já em janeiro, um caso rumoroso passou pelo Cade: a Superintendência-Geral determinou, como medida preventiva, a intervenção em empresa (grupo Cascol – Gasol) acusada de cartel no mercado de combustíveis no Distrito Federal. O referido grupo era o líder do mercado. Foi determinado à Cascol que apresentasse em 15 dias cinco nomes com reputação ilibada, experiência e independência, um dos quais seria escolhido pelo Cade para ser administrador provisório do grupo para pôr fim ao suposto cartel. O Tribunal do Cade confirmou a medida da Superintendência, observando que a intervenção observou todos os requisitos legais. Em outubro, o Cade prorrogou por mais 180 dias a intervenção. Trata-se de medida extremamente rigorosa e cuja vigência precisa ser analisada com cuidado, dado o risco de intervenção demasiada sobre a livre iniciativa.

Ademais, a operação “lava jato” e a investigação pelo Cade do suposto cartel em licitações para obras onshore da Petrobras, cujo processo foi instaurado pela autoridade antitruste em dezembro de 2015, têm gerado desdobramentos provenientes de diversos acordos de leniência firmados com empresas alvo daquela investigação. Exemplos desses desdobramentos são as investigações sobre supostos cartéis em licitações (i) para urbanização de favelas no Rio de Janeiro, oriunda de leniência celebrada com a Andrade Gutiérrez Engenharia S/A, (ii) de edificações especiais da Petrobras, decorrente de leniência celebrada com a carioca Christiani-Nielsen Engenharia S/A, (iii) de estádios da Copa do Mundo de 2014, iniciada por leniência também da Andrade Gutiérrez, e (iv) da Usina Hidrelétrica Belo Monte, também pertinente a leniência da Andrade Gutiérrez.

Dos 24 processos administrativos julgados pelo Cade em 2016, 16 foram casos de cartel, e em 8 deles houve condenação. Entre eles estão:

(i) o cartel no mercado internacional de compressores para refrigeração, condenando as empresas Household Compressors Holding S.p.A, Danfoss A/S e Panasonic Electric Works Co. Ltd. e três pessoas físicas a multas que somaram R$ 21,3 milhões e arquivando o processo em relação à Whirlpool S/A e à Whirlpool Unidade Embraco Compressores e Soluções de Refrigeração e nove pessoas físicas ligadas ao grupo, em razão da celebração de TCCs;

(ii) o cartel no mercado internacional de componentes de vidro para tubos de raios catódicos, em que houve condenação das empresas Nippon Electric Glass Co. Ltda. a R$ 5,8 milhões e Schott AG a R$ 4,3 milhões (a Samsung Corning Glass, que celebrou Leniência, a Asahi Glass Co. LTD. e a Hankuk Electric Glass CO. LTD., que celebraram TCCs, assim como seus funcionários e ex-funcionários que aderiram aos acordos, não sofreram condenação).

Os TCCs também foram instrumentos bastante utilizados na política de persecução a cartéis. Neste ano, o Cade julgou 35 requerimentos de Termos de Compromisso de Cessação, acumulando um total de R$ 208,5 milhões em contribuições pecuniárias (números ainda não consolidados) a serem revertidas para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD).

Por fim, é importante mencionar o Memorando de Entendimento 1/2016, celebrado entre o Cade e o Grupo de Combate a Cartéis da Procuradoria da República em São Paulo (PR/MPF/SP), por meio do qual se estabeleceu que, quando uma pessoa física ou jurídica negociar um TCC com o Cade, pode ser iniciada uma coordenação institucional para que se negocie também o Acordo de Colaboração Premiada (artigo 4º da Lei 12.850/2013) e a Confissão Qualificada pela Delação (artigo 16 da Lei 8.137/1990) com a PR/MPF/SP, oficializando experiência pioneira entre os órgãos.

Abuso de posição dominante
Após 16 anos de investigação, o Cade decidiu arquivar processo administrativo contra a Santos Brasil S.A. – TECON (Santos Brasil) e Terminal de Contêineres da Margem Direita S/A (Tecondi – atual Ecoporto) por alegada prática de estipulação e cobrança de valores adicionais a título de entrega postergada de contêineres. O Cade consignou que a cobrança era legal e tinha racionalidade econômica, não consubstanciando infração à ordem econômica. Ainda nesse mesmo setor, processo envolvendo cobrança de segregação e entrega contra a Rodrimar tem sido objeto de intensa discussão e pende agora de decisão final.

Assim como o Tribunal do Cade, a Superintendência-Geral tem enfrentado questões complexas envolvendo abuso de posição dominante. Há três inquéritos em curso examinando o mercado de meios de pagamento, cujo resultado pode ter efeitos relevantes sobre o custo de transações financeiras para o varejo. Esses inquéritos investigam práticas dos bancos Itaú-Unibanco, Banco do Brasil e Bradesco, as credenciadoras Rede e Cielo, detidas por esses bancos, e as bandeiras Elo, Amex, Alelo, Hiper, entre outras, que alegadamente dificultam a entrada de novos concorrentes.

Nesses casos, o Cade terá de estabelecer parâmetros objetivos para a análise e julgamento dos processos envolvendo supostas condutas unilaterais, de modo a desincentivar práticas abusivas, mas também não mitigar condutas empresariais competitivas e salutares.

Propriedade intelectual e direito da concorrência
O Cade terá pela frente o julgamento de um caso paradigmático envolvendo propriedade intelectual e Direito Concorrencial: o caso Anfape. Em junho deste ano, a Superintendência-Geral proferiu parecer contrário ao exercício legítimo de direitos de registro de desenho industrial por Fiat, Ford e Volkswagen. De acordo com esse parecer, a imposição de direitos válidos de propriedade intelectual sobre os desenhos de peças automotivas contra fabricantes que copiam as peças sem licença teria impactos anticompetitivos sobre os mercados de reposição e deveria ser sancionada. Em outras palavras, na contramão da jurisprudência internacional, o parecer da Superintendência sugere que seja considerado ato ilícito o exercício de direitos validamente obtidos por meio da propositura de ações judiciais que visam cessar atos de infração, colocando assim em cheque a proteção conferida pelo direito de propriedade intelectual. Trata-se de caso com potencial de gerar um precedente relevante para a política de defesa da concorrência no país, notadamente no que se refere à sua interação com outras políticas públicas como a de propriedade industrial. A decisão nesse caso pode impactar os incentivos a inovar e deve ser monitorada com muita cautela.

Controle de concentrações
O ano de 2016 foi marcado por importantes controvérsias no âmbito do controle de concentrações, as quais resultaram em debates intensos e votações não unânimes pelo Tribunal do Cade.

No Ato de Concentração que avaliou uma joint venture para criação de um novo bureau de crédito entre Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica, Itaú e Santander, verificou-se haver preocupações quanto à possibilidade de discriminação no acesso às informações geradas pelos bancos aos bureauxde crédito e de discriminação do acesso de bancos concorrentes aos serviços do novo bureau. Enquanto a maioria dos conselheiros entendeu que a versão final do Acordo em Atos de Concentração (ACC) proposto endereçava adequadamente tais preocupações, os conselheiros Cristiane Alkmin e João Paulo de Resende recomendaram restrições unilaterais adicionais não contempladas no acordo, tendo votado pela negativa do ACC. O Ato de Concentração foi então aprovado, por maioria, mediante assinatura do acordo.

Também a joint venture entre SBT, Record e RedeTV, criada para atuar no licenciamento de canais de programação para prestadoras de serviços de TV por assinatura, acabou sendo objeto de visões distintas por parte do tribunal. A conselheira relatora, Cristiane Alkmin, sustentou que a operação teria como único propósito o acordo horizontal entre concorrentes para formação de preço na venda de conteúdo, sem qualquer eficiência demonstrada, votando pela reprovação do AC, além de recomendar que a Anatel e a Ancine adotassem medidas para reversão das condições assimétricas de negociação de pequenos grupos. Apenas o conselheiro João Paulo de Resende aderiu ao voto da relatora. Os demais conselheiros, com exceção de Márcio de Oliveira Júnior (que votou pela aprovação incondicionada), seguiram o voto-vista do conselheiro Alexandre Cordeiro, aprovando a operação mediante ACC que estabelece obrigações de investimento, subsídios a pequenos e médios operadores de TV por assinatura, além de um prazo de seis anos para vigência da JV.

Mais um caso em que houve divergência no âmbito do Tribunal do Cade, o Termo de Compromisso de Desempenho firmado no âmbito de Ato de Concentração entre CSN e Usiminas foi objeto de dois despachos da Presidência do Cade, nos quais se permitiu à CSN eleger membros dos conselhos de administração e fiscal como forma de proteger o capital investido na empresa. Os conselheiros João Paulo de Resende e Cristiane Alkmin votaram pela não homologação dos despachos, entendendo que eles minavam os objetivos do TCD original. A posição em favor da homologação dos despachos da Presidência restou vencedora, com voto de qualidade do presidente substituto Marcio de Oliveira Júnior.

Outras decisões relevantes tomadas no âmbito do controle de concentrações, por unanimidade, foram a aprovação da compra do HSBC pelo Bradesco mediante a celebração de ACC, a aprovação da operação entre Reckitt e Hypermarcas mediante venda de ativos, e a revisão do Ato de Concentração que deu origem ao Consórcio Gemini.

Agenda para 2017
Um balanço do ano de 2016 evidencia que o Cade avançou em temas institucionais relevantes, tendo publicado guias e resoluções que aprofundam assuntos prementes, como o compliance antitruste, ou aprimoram medidas pretéritas, como a regulação dos contratos associativos. Casos de grande impacto para a sociedade foram julgados e outros se encontram em estágio avançado antes da decisão.

2017 deverá ser um ano em que a composição do tribunal, uma vez completada, terá diante de si enormes desafios. Primeiro, há uma série de investigações relevantes em curso que devem ter desdobramentos importantes, tais como o caso Anfape e investigações de cartel relacionadas à operação “lava jato”. Segundo, é muito relevante que os guias e resoluções proferidas em 2016 sejam agora objeto de cumprimento rigoroso e aperfeiçoamento a partir da experiência em casos concretos, como ilustra o exemplo da Resolução 17, que constitui importante evolução normativa. Terceiro, é fundamental que o Cade reformule sua estrutura para dedicar mais recursos e pessoal ao exame de condutas unilaterais, que permanecem sendo objeto de processos de duração além do razoável e com análises que merecem ser melhor desenvolvidas. Por fim, a importância de determinados casos para o antitruste nacional demandará que a nova composição do tribunal reitere sua capacidade de lidar com questões complexas, ponderando com cuidado argumentos das partes e dos órgãos de instrução.

Fonte: Conjur