Considerações dos direitos do autor de obra de arte (parte 1)

Rica e pluriforme, a Arte é manifestação genuína na qual convivem o material e o imaterial. Não é demais lembrar a importância da criação intelectual. Tanto mais sensível essa importância quando o criador faz da criação sua própria razão de vida.

Com essas palavras, torno a escrever na coluna “Direito Civil Atual”, coordenada pelos ministros Luís Felipe Salomão, Antonio Carlos Ferreira e por mim, ao lado dos professores Ignacio Poveda, Otavio Luiz Rodrigues Jr., José Antonio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva.

Esta coluna apresenta as conclusões de um interessante julgado proferido pela 2ª Turma da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, cuja controvérsia trata da proteção dos direitos do autor de obra de arte perante o ordenamento jurídico pátrio. De minha relatoria, o caso foi o primeiro a cuidar especificamente do Direito da Arte na 1ª Seção do Tribunal da Cidadania.

Narraram os autos que uma artista plástica, artesã e figureira registrada, ao procurar os serviços de uma agência postal, foi surpreendida com a imagem de uma de suas esculturas (um presépio natalino) estampada e comercializada sob a forma de selos postais. Na ocasião, a referida obra acabara de ser destinada ao acervo de um museu público voltado ao folclore nacional. Não tendo celebrado negócio jurídico ou sequer sido procurada pela empresa pública postal, restou à artista plástica propor, na Justiça Federal, ação de indenização em desfavor da pessoa jurídica de direito público que estava reproduzindo e utilizando, de modo não autorizado, a imagem de seu trabalho em selos.

O juízo de primeiro grau concluiu, com base no conjunto probatório, que aproximadamente 2 milhões de selos foram indevidamente postos em circulação a partir da reprodução da imagem do presépio, não logrando a empresa pública ré provar a licitude do referido ato. A sentença julgou procedente o pedido em relação aos danos patrimoniais, fixados em 1% sobre o número de selos impressos multiplicado pela tarifa do mês de circulação, devidamente atualizados, além de honorários em 10% sobre o total do débito.

A artista interpôs apelação sob o argumento de que, além dos danos patrimoniais, também teria direito à indenização pelo uso indevido da imagem por terceiros. A ré, por sua vez, apresentou recurso adesivo, alegando que a transferência da obra de arte se deu de forma onerosa a museu da União, ente este ao qual também pertencia a empresa pública, que agira sem qualquer interesse econômico, mas unicamente no intuito de divulgar a arte nacional, tanto que dera o devido crédito à autora, apondo seu nome na lateral dos selos. O tribunal regional negou provimento à apelação e ao recurso adesivo, mantendo, na íntegra, a sentença[1].

Inconformada com a condenação, a empresa pública interpôs Recurso Especial, o qual foi autuado no Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.422.699/SP) e distribuído à 2ª Turma, sob minha relatoria. Nas razões, a recorrente sustentou, com base no artigo 105, inc. III, “a”, da Constituição da República, que o acórdão regional teria violado o artigo 80 da Lei de Direitos Autorais anterior (Lei 5.988/1973); e o artigo 9º, inciso III, o artigo 33, parágrafo 1º, e o artigo 47 da atual Lei de Serviços Postais (Lei 6.538/1978). Argumentou que, ao alienar a obra ao museu, a título oneroso e sem qualquer ressalva, a artista transferiu, automaticamente, o direito de exposição e de reprodução da obra ao público. Acresceu que o ato de fotografar e estampar o presépio em selos não implicava nenhuma contrariedade ao direito moral e material da autora, tampouco importando para a tarifação dos selos se a obra tinha cunho artístico ou não, visto que a tarifa postal é tabelada em todo o país, sem intuito econômico ou comercial.

A meu sentir, tais razões recursais são faltas de amparo jurídico. O autor não se desvincula de sua obra quando transmite ou cede sua propriedade. A obra do autor é inseparável de seu intelecto.

Modernamente, o Direito da Arte possui estatuto epistemológico autônomo, mesmo mantendo frequentes interligações, por exemplo, com o direito do autor, o Direito Civil, o Direito Empresarial, o Direito Penal, o Direito do Trabalho, o Direito Tributário, o Direito Internacional, o Direito Administrativo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, prevê que “todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística de sua autoria” (artigo 27, parágrafo 2º). A Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas,[2] de 1886, revista em Paris em 1971, foi promulgada no Brasil pelo Decreto 75.699/1975. A Constituição Brasileira de 1988 também amparou, no artigo 5º, a liberdade da expressão artística (inciso IX), conferindo aos autores o direito exclusivo de utilizar, publicar ou reproduzir suas obras, transmissível aos herdeiros por tempo fixado em lei (inciso XXXVII). O Código Civil de 2002 não contém disposição expressa no sentido de ser o direito do autor um bem móvel, não obstante o artigo 83 considere bem móvel, para efeitos legais, “os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes” (inciso II) e “os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações” (inciso III).

A expressão artística corresponde, hoje, a direito individual, cuja importância é reconhecida e protegida amplamente. A doutrina especializada, estrangeira e nacional, inclina-se cada vez ao estudo da complexidade inerente aos direitos do autor, quer na vertente artística, quer na literária e científica.

Sabe-se que a obra de arte é protegida desde o ato de sua criação, não se exigindo do autor o cumprimento de maiores formalidades. O autor (criador) dará o destino que livremente escolher para sua obra (objeto de sua criação), competindo-lhe, exclusivamente, decidir sobre possíveis utilizações, publicação ou reprodução. Mas, quanto a essa “exclusividade”, José de Oliveira Ascensão esclarece que ela é transitória, pois, decorrido o lapso temporal para a compensação do autor, sobrevém a liberdade de usufruir dos bens culturais[3].

Antônio Chaves definiu o direito do autor como “o conjunto de prerrogativas que a lei reconhece a todo criador intelectual sobre suas produções literárias, artísticas e científicas, de alguma originalidade: de ordem extrapecuniária, em princípio, sem limitação de tempo; e de ordem patrimonial, ao autor, durante toda a sua vida, com o acréscimo, para os sucessores indicados na lei, do prazo por ela fixado”[4].

O direito autoral apresenta uma dualidade, conforme afirma Silmara Chinellato:

“A natureza jurídica híbrida, com predominância de direitos da personalidade, de Direito de Autor como direito especial, sui generis, que não tem e nunca teve natureza de direito de propriedade, terá como consequência não serem aplicáveis regras de propriedade quando a elas se referirem, nas múltiplas considerações das relações jurídicas. […] A natureza jurídica do direito de autor é a de direito intelectual, na terminologia pioneira de Edmond Picard”[5].

É híbrido, portanto, o caráter do direito de autor, composto de direitos morais com natureza jurídica de direitos da personalidade (inalienáveis, incessíveis, imprescritíveis, impenhoráveis e intransmissíveis) e de direitos patrimoniais (alienáveis, cessíveis, prescritíveis, penhoráveis, transmissíveis).

 

Fonte: Conjur