Decisão histórica do STF para a proteção de dados no Brasil

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) referendou, nesta quinta-feira (7), a medida cautelar deferida pela ministra Rosa Weber, no âmbito de cinco Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) propostas pelos partidos PSB, PSOL, PCdoB e PSDB, e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, para suspender a eficácia da Medida Provisória (MP) 954 de 2020.

Trata-se de julgamento de extrema relevância, tendo em vista que, em um contexto de adiamento da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados, estabeleceu os primeiros parâmetros constitucionais de proteção de dados no Brasil.

A MP 954 foi editada no dia 17 de abril, determinando que empresas de telecomunicações prestadoras de telefonia fixa e móvel compartilhassem com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nome, número de telefone e endereço de toda sua base de clientes, pessoas física e jurídica. Em 3 dias a partir da publicação da MP, o Presidente do IBGE deveria editar ato sobre o procedimento de disponibilização desses dados, que, em até 7 dias, deveriam ser disponibilizados.

Por dez votos a um, o STF decidiu pela suspensão da MP, entendendo que o compartilhamento conforme previsto violaria os direitos constitucionais à intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados, previstos no art. 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal.

De maneira geral, as ADIs argumentam que a MP não delimitou a finalidade da pesquisa nem a forma de utilização ou proteção dos dados, violando os direitos da dignidade da pessoa humana, da inviolabilidade da vida privada, do sigilo dos dados e da autodeterminação informativa.

Foi mencionada também a ausência de contrapartidas de segurança, em vista do potencial dano em caso de incidente com os dados recebidos. Defendendo a MP, o Advogado-Geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior, afirmou que seriam obtidos apenas dados cadastrais neutros e potencialmente públicos que, inclusive, constariam nas antigas listas telefônicas. Alegou que bastaria àquele que não quisesse responder à pesquisa, ao receber a ligação do IBGE, recusar sua participação.

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras argumentou que a Constituição protege o sigilo e a inviolabilidade da comunicação, não dos dados em si. A ministra relatora Rosa Weber sustentou que a MP não delimitou objeto, finalidade, amplitude e necessidade da estatística, nem como os dados seriam efetivamente utilizados, de forma que não ofereceu condições para avaliação de sua adequação e necessidade.

Para a ministra, a MP não apresentou mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos ou utilização indevida e, portanto, não satisfez as exigências constitucionais para efetiva proteção dos direitos fundamentais.

Seguiram a relatora os ministros Alexandre de Moraes, Celso de Mello, Edson Fachin, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Carmen Lúcia e Dias Toffoli, vencido o ministro Marco Aurélio. Alexandre de Moraes ressaltou que os direitos fundamentais são imprescindíveis para garantir o estado de direito e só podem ser limitados seguindo os parâmetros de excepcionalidade, razoabilidade e proporcionalidade.

Lembrou que, ainda que o indivíduo se recusasse a responder à pesquisa do IBGE, o compartilhamento de dados já teria sido feito. O ministro Luis Roberto Barroso afirmou que, dada a importância do IBGE, seguia a relatora com pesar, considerando os enormes riscos do compartilhamento.

Para Barroso, o compartilhamento de dados pessoais para fins estatísticos somente será compatível com o direito à privacidade se: a finalidade da pesquisa for bem delimitada; o acesso aos dados ocorrer na extensão mínima necessária; e forem adotados procedimentos de segurança suficientes.

De acordo com o ministro Fux, dados pessoais hoje nunca são insignificantes. Mencionou direito autônomo à proteção de dados pessoais, relevante porque atingiria a liberdade do pensamento. O ministro Gilmar Mendes ressaltou que a força normativa da Constituição pode e deve ser atualizada frente aos avanços tecnológicos para preservar garantias individuais que constituem a base da democracia.

Afirmou a existência de um direito fundamental à proteção de dados na ordem constitucional que, exorbitando à equiparação com o direito ao sigilo, derivaria de uma compreensão integrada do texto constitucional, dos direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da inviolabilidade da vida privada e da intimidade, da igualdade, e a garantia do habeas data. Divergindo dos demais ministros, o ministro Marco Aurélio não viu inconstitucionalidade na medida, entendendo que a finalidade do compartilhamento de dados seria o levantamento estatístico pelo IBGE e que a cautelar não seria necessária, tendo em vista que a MP, seguindo seu curso constitucional, ainda seria analisada pelo Congresso Nacional.

No entanto, em vista de o prazo determinado pela MP para entrega de dados ser menor que o de trâmite esperado no Congresso Nacional, o voto divergente não ponderou que, uma vez entregues os dados sem preservação de direitos dos titulares, surge risco de dano irreparável.

Os efeitos da MP estão suspensos, mas sua tramitação segue no Congresso, onde já existem mais de 300 emendas. A medida poderá ser rejeitada ou convertida em lei, com ou sem alterações.

Estamos diante de histórica decisão.

Além de proteger dados de milhões de brasileiros, que seriam compartilhados sem qualquer salvaguarda, o STF afirmou a importância do direito à proteção de dados como essencial para uma sociedade democrática e estabeleceu as bases para que esse direito seja reconhecido enquanto direito fundamental na ordem constitucional brasileira.


– José Eduardo Pieri é sócio na área Direito Digital e Novas Tecnologias no BMA – Barbosa, Müssnich, Aragão;

– Maria Clara Carvalho de Sena é advogada na área de Propriedade Intelectual e Direito Digital e Novas Tecnologias no BMA – Barbosa, Müssnich, Aragão

Fonte Estadão | Clipping LDSOFT
Foto: Rede Brasil