Direito autoral: A incomunicabilidade da obra de arte e a partilha de bens

Autoras: Ieda Tatiana Cury [1]e Flavia Romano de Rezende[2]

  1. Introdução

A presente obra tem por finalidade levantar o interesse dos estudiosos, acadêmicos e demais operadores do direito sobre a dicotomia envolvendo o direito civil e o direito autoral, notadamente através da análise da seguinte situação: a possibilidade de obras de arte, frutos da criatividade de um dos cônjuges, poderem ser arroladas e avaliadas para posterior partilha em ação de divórcio.

Antes de responder à referida pergunta, necessário levantar alguns aspectos relevantes acerca do direito autoral para, ao final defender a tese que melhor se adeque à noção de equidade e justiça.

Sob esse prisma, inicialmente serão abordados alguns conceitos estudados pelo direito autoral, tais como: obras intelectuais, direitos morais e patrimoniais, bem como suas diferenças.

Na sequência, analisar-se-ão os fundamentos defendidos nas duas posições doutrinárias existentes acerca da possibilidade da comunicabilidade ou não dos referidos bens imateriais.

Através do estudo do direito comparado, verificar-se-ão diversas visões e fundamentos que justificam ou não a comunicabilidade das obras de arte que variam de acordo com a origem a qual o direito autoral se formou em determinados países: de tradição anglo-saxã ou de tradição do continente europeu.

Por fim advogando em favor da possibilidade da comunicabilidade dos rendimentos auferidos quando da alienação ou exploração da referida propriedade imaterial, chegar-se-á à conclusão de que tal possibilidade, ao contrário do apregoado pela doutrina dissonante, está em consonância e não contra à nossa Lei maior e com os princípios que a norteiam.

  1. Direitos Autorais: caráter patrimonial e moral

Em pesquisa sobre casos jurisprudenciais envolvendo direito de família e sucessório, deparei-me com a seguinte questão: ação de arrolamento em divórcio litigioso em que vários bens se tratavam de obras de artes produzidas por um dos cônjuges.  A controvérsia girava entorno da possibilidade de as obras de arte, frutos da criatividade de um dos cônjuges, artista plástico, serem arroladas e avaliadas visando posterior partilha entre os ex-nubentes.

Inicialmente, deve-se registrar a complexidade e a escassez jurisprudencial sobre o tema, razão pela qual se faz necessário tecer considerações advindas da legislação e posteriormente da doutrina, para, ao final, chegar-se ao cerne da questão.

A Lei Maior traz no caput do artigo 5º os chamados direitos individuais invioláveis nos termos dos incisos que dele se seguem. O direito à propriedade é dito como uma garantia ornada de inviolabilidade, tendo em vista que a propriedade é ligada à própria dignidade da pessoa humana, esta eivada de proteção pétrea.

Os chamados direitos Autorais se configuram como direitos que o indivíduo possui sobre sua criação ideológica, perfazendo o direito patrimonial e o direito moral que detém ante a sua obra. Desta forma, os direitos autorais são direitos presentes em todas as áreas de criação da sociedade – artísticas, culturais, científicas e industriais.

As obras intelectuais são protegidas tanto pela CRFB/88 em seu art. 7º, VII, como pela Lei nº 9.610/98 em seu art.22, possuindo o autor sobre as mesmas, direitos morais e patrimoniais.

Nesse contexto, entende-se que a principal diferença entre os direitos patrimoniais e direitos morais está na possibilidade de o criador da obra dispor livremente dos direitos patrimoniais (face econômica da obra ou criação), enquanto que os direitos morais permanecem investidos, tão-só e permanentemente, na pessoa do criador.

Tal conclusão decorre não só da própria lei de regência dos direitos autorais, a qual determina em seu art. 28 que cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica, mas da nossa Lei Maior, que em seu art. 5º, inciso XXVII, estabelece:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; (…)”

Reportando-se ao inciso XXVII, tratando sobre a Propriedade Intelectual, assim considera José Afonso da Silva em sua obra: Comentário Contextual à Constituição. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007:

“A matéria consta do art. 5º, XXVII, que contém duas normas bem distintas. A primeira e principal confere aos autores o direito exclusivo de utilizar, publicar e reproduzir suas obras, sem especificar, como faziam as Constituições anteriores; mas, compreendidos e, conexão com o disposto no inciso IX do mesmo artigo, conclui-se que são obras literárias, artísticas, científicas e de comunicação. Enfim, aí se asseguram os direitos do autor de obra intelectual, reconhecendo-lhe, vitaliciamente, o chamado “direito de propriedade intelectual”, que compreende direitos morais e patrimoniais […]” (SILVA, 2007, p. 119).

Incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 75.699/1975, a Convenção de Berna prevê no seu art. 6 (bis)[3] a possibilidade de o autor reivindicar a paternidade da obra, independentemente dos direitos patrimoniais a que fizer jus.

De tais comentários extrai-se que o objetivo da lei de proteção do direito de autor no Brasil, que segue o modelo francês: “Droit d’auteau”, tem como foco principal a proteção da figura do autor, e não da obra intelectual. Desta forma, os chamados direitos morais do autor seriam reconhecidos como direitos da personalidade. Nestes moldes, estes direitos seriam personalíssimos, inalienáveis, irrenunciáveis, impenhoráveis e absolutos, surgidos no momento da criação da obra e não tendo qualquer relação econômica ou pecuniária a eles atrelada.

A Lei 9610/98 enumera em seu artigo 24 os direitos morais de autor, quais sejam:

“Art. 24. São direitos morais do autor:

I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;

II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;

III – o de conservar a obra inédita;

IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

V – o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;

VI – o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem;

VII – o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado” (NIGRI, 2006, p.28).

Daí o caráter de alienabilidade dos direitos patrimoniais do criador, que são de exclusivo exercício do mesmo e incomunicável.

3.Direito Civil e Direito Autoral

Historicamente, o Código Civil de 1916 iniciou a proteção do direito autoral através do art. 263 quando estabeleceu que as tenças (valores recebidos pelos autores de obras literárias) eram excluídas da comunhão.

Posteriormente, o Código Civil de 2002 substituiu o referido dispositivo pelo artigo 1.659, que em seu inciso VI, estabelece que os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge estão excluídos da comunhão, verbis:

Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:

VI – os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;

Por sua vez o artigo 39 da Lei dos direitos autorais, assim dispõe:

“Art. 39. Os direitos patrimoniais do autor, excetuados os rendimentos resultantes de sua exploração, não se comunicam, salvo pacto antenupcial em contrário.”

Não há dúvida de que a criação intelectual é monopólio exclusivo do criador da obra, visto ser um ramo do direito sui generis, carregado de patrimonialidade e também de cunho moral, de natureza pessoal e, às vezes, personalíssima, não podendo se comunicar com o cônjuge ou companheiro, salvo realização de pacto antenupcial.

Seguindo tal raciocínio Silmara Juny de Abreu Chinellato[4] defende:

“O art. 1.659, VI do Código Civil que se aplica ao regime da comunhão parcial e também à comunhão universal (inciso V do artigo 1.668 do Código Civil), determinam que são excluídos da comunhão “os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge. Pelo Código Civil não se comunicam também os rendimentos dos direitos patrimoniais, pois direitos autorais entram na classificação de proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge. O Código Civil é lei posterior à lei n. 9610/98 e regulamentou inteiramente a matéria de regime de bens. Assim, no meu modo de ver, atualmente, não há comunicação nem de direitos patrimoniais, nem de seus respectivos rendimentos, que entram na classificação de ganhos de quaisquer natureza, a que se refere a palavra “proventos”. É preciso pacto antenupcial para que haja tal comunicação.”

Por outro lado, o citado artigo 39, também aduz que os rendimentos decorrentes das obras criadas pelo autor, entendidos esses como o proveito econômico, poderiam ser comunicáveis, uma vez que não se confundem com o ato criativo em si.  Portanto, entendo que, o que a lei autoral visa coibir é que terceiros, não criadores da obra intelectual, tenham o poder de decidir o tempo, a oportunidade, o modo, a forma e qualquer outra modalidade de alienação da obra de arte.

O simples fato de as obras de arte (bens móveis por natureza), produzidas na constância do matrimônio, serem utilizadas por um dos cônjuges, não impede o compartilhamento de seus rendimentos com o cônjuge não criador, na hipótese de alienação das mesmas, pois vige a presunção de que todos os bens amealhados ou construídos durante a vida em comum, ainda que frutos da criação de um só dos nubentes decorrem do esforço mútuo do casal.

Desta feita, deve-se verificar qual o comando legal aplicável ao presente caso: a norma prevista no Código Civil ou o a Lei que regulamenta o Direito Autoral; em seguida, analisar a possibilidade de eventuais proventos decorrentes de obras de arte criadas na constância do casamento, pelo cônjuge varão, pinturas e esculturas, cuja natureza jurídica é de bens móveis, se comunicarem com o cônjuge não autor.

Independentemente de se adotar a regra esculpida do artigo 1659, VI do Código Civil ou do art. 39 do diploma autoral, imperioso dar ao caso uma interpretação sistemática, dentro de um viés civil constitucionalista, com ênfase nos princípios da função social, da solidariedade, da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Nesse cenário, qualquer interpretação que subverta o princípio da imutabilidade do regime patrimonial da comunhão parcial deve ser rechaçada, sob pena de iniquidade.

Nesse sentido, a interpretação de Milton Paulo de Carvalho Filho, verbis:

“O inciso VI inclui no rol de bens excluídos da comunhão os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge. Entende-se por provento toda e qualquer remuneração obtida pela atividade profissional do cônjuge: salario do empregado, honorários do profissional liberal, pro labore etc. Essa exclusão da lei deve ser entendida para o caso de separação do casal: a remuneração de cada qual não integrará a partilha. Contudo, durante a vigência do casamento, uma vez percebido o provento, este passa a integrar o patrimônio do casal, seja em espécie, seja por meio da aquisição de outros bens. Entendendo que o referido inciso, se permanecer em nosso ordenamento, desnatura os regimes de bens de comunhão (universal e parcial), Alexandre Guedes Alcoforado Assunção sugeriu que, no então Projeto de Alteração do CC do Deputado Ricardo Fiuza (atual PL n.699/2011), o texto fosse suprimido, renumerando-se o último inciso”.

Não é demais trazer também à colação a lição de Maria Berenice Dias, que afirma ser:

“flagrantemente injusto que o cônjuge que trabalha por contraprestação pecuniária, mas não converte suas economias em patrimônio, seja privilegiado e suas reservas consideradas crédito pessoal e incomunicável. Tal lógica compromete o equilíbrio da divisão das obrigações familiares. Descabido premiar o cônjuge que se esquiva de amealhar patrimônio, preferindo conservar em espécie os proventos do seu trabalho pessoal.”

Corroborando com o referido raciocínio, Sumaya Saady Morhy Pereira (Pereira Pág.87-88) esclarece dois aspectos principais, dentre as substanciais mudanças no Direito de Família contemporâneo: a alteração do papel atribuído às entidades familiares e a alteração do conceito de unidade familiar. Para a autora, a família passou a ter papel funcional de servir de instrumento de promoção da dignidade humana. Não é mais protegida como instituição, titular de interesse transpessoal, superior aos interesses dos seus membros; passou a ser tutelada como instrumento de estruturação e desenvolvimento da personalidade dos sujeitos que a integram.

Acresça-se que apesar de a jurisprudência hesitar quanto a melhor interpretação a ser dada à lei, prevalece o entendimento da maioria dos Tribunais do país pela incomunicabilidade dos direitos patrimoniais oriundos de obras autorais[5].

Nada obstante, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 00527956120128190000, em 03/04/2013, na Vigésima Câmara Cível do TJRJ, diante das peculiaridades do caso concreto haja vista terem sido os quadros produzidos, pelo cônjuge varão, exclusivamente com recursos do cônjuge “não criador”, durante a constância do matrimonio e por entender ser esta a dicção legal aplicável.

Ainda que em sede de Agravo de Instrumento, convém reproduzir o referido voto, que restou assim ementado:

Agravo de instrumento. Direito de família e direito autoral. Divórcio. Arrolamento de bens. Obra intelectual protegida. Incomunicabilidade. Recurso voltado contra decisão que concedeu liminar para determinar o arrolamento dos bens sob a guarda do cônjuge varão, consistentes em obras de arte por ele criadas. Proteção conferida pela Constituição Federal e pela Lei de Direitos Autorais, que estabelece a incomunicabilidade dos direitos patrimoniais do autor, salvo previsão contrária em pacto antenupcial. Possibilidade de comunicação apenas dos rendimentos resultantes da exploração da obra, e somente no período que medeia entre sua percepção e o término da relação conjugal, dada sua natureza de proventos do trabalho pessoal do cônjuge. Interpretação sistemática do artigo 5º, XXVII da Constituição Federal, dos artigos 3º; 4º; 11; 22; 24; 27 a 29; e 39 da Lei nº 9.610/98 e do artigo 1.659, VI do Código Civil. Ausência dos requisitos autorizadores da concessão de liminar. Decisão reformada. Recurso provido.

Observe-se que com relação aos utensílios de uso profissional, por óbvio, entendi que os mesmos deveriam ser excluídos do arrolamento ex vi a literalidade do inciso V do art. 1.659 do CC/02:

Ante o exposto, resta demonstrada a divergência legal e doutrinária aplicável à espécie o que por si só justifica a concessão de liminar pleiteada em sede cautelar de arrolamento, eis que evidenciada a presença do periculum in mora, razão pela qual se dá parcial provimento ao recurso de agravo, tão somente para retirar do arrolamento os utensílios de uso profissional (pincéis, tintas, telas, etc) do agravante, bem como, devolver a posse direta das obras de arte ao mesmo, após o término da avaliação. Outrossim, em caso de eventual alienação das referidas obras ou de qualquer outra forma de obtenção de rendimentos pela exploração econômica das mesmas, entendo que deverá o agravante depositar no juízo competente da ação principal, 50% dos proventos percebidos.

  1. Bens Imateriais e regimes de bens no direito comparado

Para intensificar a reflexão sobre o dilema aqui enfrentado, interessante analisar em casos semelhantes, que decisões americanas, canadenses, europeias e de outros países invocam precedentes de Tribunais Superiores ou Cortes Constitucionais de outras jurisdições que privilegiam, diante do caso concreto, o regime de bens em que foi pautada a escolha do casal. Sem embargo de opiniões contrárias, a Corte de Apelação da Califórnia, analisando a prevalência da lei civil estadual sob a lei federal de propriedade intelectual, decidiu que desde o momento da criação da obra no casamento, qualquer direito autoral está sujeito a comunhão e, portanto, a esposa ‘não-autora’ terá direito a 50% dos rendimentos. A lei do Estado da Califórnia e outras fincam raízes em um modelo de parceria conjugal que reconhece os esforços comuns dispendidos por ambos durante o matrimônio, vigorando a presunção de que um dos cônjuges forneceu os meios necessários para que o outro desempenhasse o seu mister, senão vejamos[6]:

“So let me give an example.  Copyrights in 1960 and, as part of the divorce agreement, the author’s copyrights are transferred to the spouse.  56 years from 1960 is 2016.  During a 5 year window commencing on the date of the respective copyrights in 2016, it is possible that the author, if the author is still alive or if not alive, the author’s children and widow/widower, may be able to terminate the transfer to the original spouse.  (What seems likely is that those parties can terminate the grant to other parties the author made, to the exclusion of the divorced spouse.)  Appropriate notice must be given no later than 2 years nor earlier than 10 years prior to the effective date of termination.”

Na mesma esteira, são as decisões judiciais de países europeus como a França, Itália e Croácia[7]:

“Limited Community of Property: France, Italy, Spain and Croatia. In France, community of property is addressed to both spouses jointly and is administered by both spouses in equal terms.32 The particularity of the French system is compensatory transfers (prestation compensatoire), a combination of matrimonial property law and maintenance.33 In most cases, the court makes compensatory orders, which can be made over and above the distribution of community of property to compensate as far as possible any disparity in the standard of living of the spouses. The purpose of this order is to maintain the financially weaker party to the best standard possible in the circumstances. The law also authorizes the transfer of real estate owned by one spouse to the other as a valid form of compensatory allowance.

Under the Italian legal matrimonial system both spouses own property (immovable and movable) jointly during marriage, regardless of whether or not the property was purchased jointly or separately. Property belonging personally to a spouse (e.g., by gift or inheritance), or of a strictly personal use, or property used in a particular profession (such as a business established and managed by either spouse) are not included. Profits from property during marriage and income from the separate profession of each spouse are owned separately by each spouse during marriage, but on dissolution of the community, they become part of the community of property.35 When the community of property comes to an end, each party becomes the owner of 50% of the family assets. Separate ownership of property can be proved “by any means”, otherwise property is presumed to be owned jointly.”

  1. A doutrina no Brasil

Após analisar julgados extraídos do direito estrangeiro, pode-se afirmar que no Brasil é possível a partilha dos rendimentos oriundos de bens autorais entre cônjuges. Posição defendida por autores renomados, tais como Jaury Nepomuceno de Oliveira Maria Berenice Dias e de Fernanda Ferrarini G. C. Cecconello[8]:

“Os direitos patrimoniais de autor são incomunicáveis, (…) Porém, é diverso dos rendimentos destes direitos, resultantes da exploração comercial da obra. Estes sim, se comunicam. Tanto isso é verdade que o cônjuge poderá promover a defesa da obra em juízo. Desta maneira, havendo separação do casal, esses rendimento deverão entrar na partilha de bens.”

Maria Helena Diniz Também comunga da mesma orientação (DINIZ pág.168):

“Por fim, deve-se frisar que nos termos do art. 39 da Lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais), os direitos patrimoniais do autor, excetuados os rendimentos resultantes de sua exploração, não se comunicam, salvo pacto antenupcial em contrário. Em suma, não há comunhão quanto aos direitos, mas apenas quanto aos rendimentos que esses produzem. Nesse sentido, por se tratar de lei especial anterior, acreditamos que essa continua produzindo efeitos não tendo sido revogada pelo CC/02.

O patrimônio autoral é um bem cuja aquisição originária se dá, basicamente, pela ação pessoal do autor. Sem esta ação criadora o bem inexiste. Ele não pode, pois, ser adquirido na constância do casamento pela ação comum dos cônjuges, salvo em caso de co-autoria.     Neste caso, não se está diante de frutos adquiridos pelos cônjuges, mas sim da atividade criadora de dois autores que, eventualmente, são casados. O ato criador é uma particularidade pessoal e um atributo individual.

Ressalva-se o pacto antenupcial que é um acordo de concessões e aquisição recíproca de bens. É uma exceção à regra geral do regime de bens no casamento. Na realidade, a legislação permite que a obra de arte se comunique, se assim for estabelecido em pacto antenupcial.

Já os rendimentos que resultam da exploração das obras de criação e engenho fogem ao caráter pessoal desse tipo de propriedade. Resultam do comércio e nada têm a ver com o ato criador em si. Eles se comunicam.

Vê-se, portanto, que têm razão os que sustentam ser o direito de autor filho do século das luzes, tendo diante de si futuro dos mais promissores. Só um povo culturalmente preparado é verdadeiramente livre. A liberdade não é mais apenas geográfica, nem mesmo política, ultrapassando a fase econômica. É preciso que seja essencialmente cultural.

O direito de autor representa uma relação jurídica de natureza pessoal-patrimonial, sem cair em qualquer contradição lógica, pois resulta da natureza especial da obra da inteligência. Então, apenas o cônjuge-autor é seu criador.

Os rendimentos resultantes da exploração da criação, ou seja, a fruição patrimonial que a obra lhe traz, sim, é comunicável. É devido aos rendimentos, ao proveito econômico, resultado do comércio, visto ser profissão lucrativa, não se relacionando com o ato criativo em si, que o cônjuge não-autor pode defender a obra de engenho, cuja aquisição dos direitos é pessoal. Mas utilizar patrimonialmente a obra intelectual não compreende o poder de decidir a oportunidade, o modo, a forma e qualquer outra modalidade da primeira publicação.

Caso ocorra uma ruptura do matrimônio, estes rendimentos devem ser arrolados na partilha dos bens. Embora com repercussões patrimoniais, estes poderes de autoria intelectual constituem direito moral do autor, que segundo a Lei nº 9.610-98, é inalienável e irrenunciável.

  1. Conclusão

Ramo do direito privado, o direito autoral tem sido responsável pelo questionamento de inúmeras controvérsias e debates inquietantes.

O presente trabalho teve por escopo trazer à baila apenas um dos inúmeros dilemas enfrentados na prática envolvendo a legislação autoral: a possível partilha de bens autorais entre ex-cônjuges.  Tal análise envolve não somente conceitos encontrados nos direitos autorais, mas também aqueles protegidos pelos direitos obrigacionais, no direito de família e no direito sucessório.

Buscou-se através do estudo tanto da legislação pátria, doutrina, jurisprudência e direito comparado, esclarecer e definir alguns pontos para se chegar às duas correntes que defendem posições antagônicas em relação à possível partilha de bens imateriais protegidos pelo direito autoral.

A primeira corrente defende a ideia da indisponibilidade e incomunicabilidade dos referidos bens. Logo, a propriedade dos mesmos só pode pertencer ao seu criador, incondicionalmente. Já o segundo posicionamento utilizando-se de uma interpretação sistemática e à luz do caso específico, defende a possibilidade da possível partilha quando os referidos bens forem alienados.

Não há dúvida que a controvérsia trazida a debate possui poucas vozes na doutrina e jurisprudência pátrios, bem como a legislação lacunosa e má redigida dá azo a interpretações equivocadas.

Assim, entendo que a melhor solução a ser dada é a segunda, frise-se, em casos específicos, em que um dos cônjuges tenha contribuído para o sucesso e desenvolvimento profissional e artístico do outro, e que os bens foram construídos na constância do casamento.

Conclui-se, portanto, que a incomunicabilidade não alcança os rendimentos porventura auferidos através da alienação das obras de arte em comento, sob pena de enriquecimento sem causa de um cônjuge em relação ao outro, além de burlar o regime da comunhão parcial de bens, transformando-o eternamente em separação total de bens, em flagrante subversão dos valores éticos e de justiça. 

  1. Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Lei de Direitos autorais. Regula a legislação sobre direitos autorais, 15ªed, São Paulo: Editora Saraiva, 2015.

BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

COELHO, Fábio Ulhoa. Direito Comercial. Vol. 2. 20ª ed, São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2016.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Familias. 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2016.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito de Família. Vol 5. 30ª ed.São Paulo: Editora Saraiva, 2016

JOSAPHT, Carlos. Ética Mundial. Esperança da Humanidade Globalizada. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

NIGRI, Deborah Fisch. Cadernos de Direito da Internet: Direito Autoral e a Convergência de Mídias.

OLIVEIRA. Jaury Nepomuceno de Oliveira e João Willington.  Anotações à Lei do direito Autoral, Lei nº9610/98, Editora Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2005.

SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.

PEREIRA, Sumaya Saady Morhy. Direitos Fundamentais e relações familiares. Porto Alegre. Livraria do advogado, 2007

[1] Doutoranda em direito pela Universidade Estácio de Sá, mestre em direito pela Universidade Gama Filho, graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense, funcionária Pública, professora de Pós Graduação e graduação em Direito Empresarial, Contratual e Direito Autoral nas Faculdades Cândido Mendes (UCAM), Faculdade Hélio Alonso (FACHA) e do Instituto a Vez do Mestre (AVM).

[2] Flávia Romano de Resende – Desembargadora Estadual do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Mestranda pela Universidade Estácio de Sá.Especialista em Direito Marcário e tributário. Professora da FGV e da IAVM.

[3] ARTIGO 6 bis – Convenção de Berna

1) Independentemente dos direitos patrimoniais de autor, e mesmo depois da cessão dos citados direitos, o autor conserva o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a toda deformação, mutilação ou a qualquer dano à mesma obra, prejudiciais à sua honra ou à sua reputação.

[4]In: www.rodrigomoraes.adv.br

[5] TJRS-AI 70011230414, 7a CC/POA;  TJRS AC 70048117212, Des. Rui Portanova. Comarca de Erechim.

[6] Ivan Hoffman, B.A., J.D. Divorce and Copyright: Getting Back…Or Losing…Rights That You Thought You Lost…Or Had (pg.78)

[7] www.ejcl.org/123/art123-4.pdf.  Limited Community of Property: France, Italy, Spain and Croatia. In France

[8]  Jaury Nepomuceno de Oliveira e João Willington, Anotações à Lei do Direito Autoral, Lei nº9610/98, Editora Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2005.