Direito Autoral e a tatuagem.

A tatuagem, que antes era uma forma de transgressão, é cada vez mais comum e aceita, mesmo nos meios mais conservadores. Não choca mais. Não é raro mulheres e homens, inclusive em idade avançada, ornamentarem suas peles com desenhos e frases. Aproveitando esse mote, vamos tratar nesse artigo como o direito de autor pode, baseado na doutrina, lidar com a tatuagem, com o tatuador e com aquele que encomenda o trabalho.

Há alguns anos, um tatuador norte–americano processou a Nike, empresa de material esportivo, por ter reproduzido em um comercial para a TV seu trabalho impresso no braço do jogador de basquete Rasheed Wallace. Confira a peça publicitária aqui. O trabalho do tatuador aparece aos 14 segundos do vídeo.

Após esse caso, a revista eletrônica Vice relata outros envolvendo tatuadores, tatuados e empresas que utilizaram a imagem de pessoas tatuadas em peças de propaganda e em jogos eletrônicos. Não há notícia de decisão judicial sobre esses casos, porque findaram em acordo com valores não revelados.

No Brasil, encontramos um precedente recente da Turma Recursal do Rio Grande do Sul envolvendo duas pessoas tatuadas. Uma acusando, entre outras coisas, a outra de ter copiado sua tatuagem. Nenhuma das duas eram tatuadoras, mas uma delas invocou o direito de autor para justificar sua ira contra sua ex adversa1.

Como já tivemos oportunidade de afirmar nesta coluna, a Lei de Direito Autorais (9.610/98) traz em seu art. 7º e incisos o que a doutrina aponta como objeto do direito autoral. Nesse dispositivo há um rol exemplificativo de obras protegidas pelo direito autoral quais sejam: os textos de obras literárias artísticas e científicas; as conferências alocuções, sermões e outras obras expressas pela voz; as obras dramáticas; as obras coreográficas e pantomímicas; as obras musicais, com ou sem letra; as obras audiovisuais; fotografia; desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; ilustrações e cartas geográficas; projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência; adaptações e traduções; programas de computador; coletâneas, compilações, antologias, enciclopédias; e as bases de dados.

A Convenção de Berna também apresenta um rol não taxativo de obras intelectuais a serem protegidas pelo Direito Autoral, conforme observa-se no Artigo 2.

Como dito, o rol é apenas exemplificativo, escolhendo o legislador, no caput do art. 7o da lei 9.610/98, a expressão “tais como”, demonstrando, a toda evidência, que outras obras serão protegidas, ainda que não constem do rol.

A lei 9610/98, portanto, é clara no sentido de que as obras intelectuais a serem protegidas serão aquelas criações do espírito, expressas em qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro. E esse suporte pode ser de qualquer natureza.

Nessa linha, a tatuagem pode ser objeto de proteção pelo direito de autor, bastando que ela seja considerada uma obra artística original e criativa. Mas o problema não acaba aí. A quem pertence esse direito? Como o titular vai exercê-lo?

Relembramos que o direito de autor é dado, na forma da Lei de Regência, àquele que tem o esforço intelectual de produzir a arte, sendo irrelevante para estabelecimento da titularidade discutir quem pagou pela arte ou quem a reproduziu. Essas lições têm especial relevância na discussão do direito autoral na tatuagem, porque o desenho que é impresso na pele daquele que encomenda, por vezes não é feito pelo tatuador e muitas vezes é uma repetição de outros já existentes.

Quando há mera repetição de desenhos pré-concebidos, não há direito de autor a ser reclamado, porque é sabido que o simples empreendimento de técnica, mesmo as mais difíceis, não gera autoria. Sem esforço intelectual, mas apenas físico, não há titularidade originária. O mesmo raciocínio pode ser aplicado àquele que paga pela tatuagem. Não será autor, porque o simples dispêndio de dinheiro não gera titularidade originária de direito de autor.

Para se ter direito de autor sobre a tatuagem é preciso, então, que o tatuador conceba um desenho original e criativo e empreenda a técnica. O direito incidirá sobre a arte, sobre a peça plástica produzida, como sobre uma pintura à óleo sobre tela, por exemplo.

Como dito linhas acima, além da titularidade, há um problema no exercício do direito de autor pelo tatuador, sobretudo quando falamos em direitos morais, porque dentre eles há alguns que são de aplicação bastante complicada para uma tatuagem, dado o suporte em que a obra é fixada.

O primeiro é no direito de paternidade. Imagine que o tatuador exija, para tatuar, que o tatuado carregue no corpo – gravado em tinta – o seu nome ou sinal convencional que reconheça a autoria da obra? Que esse é um direito seu, não há dúvida, mas certamente não será fácil convencer seu cliente a aceitar.

Também é direito do autor conservar a integridade da obra, rejeitando qualquer modificação que possa prejudicá-lo ou atingi-lo em sua reputação ou honra. O cliente do tatuador, diante disso, precisaria de autorização para “cobrir” a tatuagem ou mesmo removê-la?

O tatuador teria também o direito de modificar a obra, antes ou depois de utilizada. Isso quer dizer que mesmo que o cliente tenha gostado do resultado final da tatuagem, o tatuador – como autor de obre intelectual – teria a prerrogativa de alterá-la.

A complexidade da análise do Direito Autoral em uma obra artística, sob o formato de tatuagem, também se manifesta quando atinamos que a plataforma sobre a qual foi expressado o desenho é o corpo de outra pessoa. Portanto, toda uma ingerência de controle e alteração da tatuagem fica limitada, quando partimos do pressuposto que não há domínio físico sobre a obra.

Nesse sentido, por óbvio, haveria o comprometimento de parte do direito à exclusividade e há quem suscite a necessidade de se dividir a gestão de direitos entre o autor da arte na tatuagem e o “dono” da plataforma, ou seja, o tatuado.

Outro aspecto de relevância se refere à possibilidade de se proceder ao registro de uma tatuagem, procedimento que não se observa impedimento, uma vez que qualquer obra artística, literária ou científica é passível de registro, devendo se ater aos órgãos competentes para tanto.

Em princípio, toda a celeuma envolvendo tatuagem e Direitos Autorais parece singela, mas façamos um exercício e pensemos se uma tatuagem se torna imensamente reconhecida e comerciável, além de objeto de vultosa quantia de dinheiro. Nesse momento, pode ter certeza, que a discussão se estabelecerá e não será fácil delimitar os limites dos direitos.

A jurisprudência ainda é restrita sobre o tema e ainda restam pendentes alguns esclarecimentos importantes, o que não diminui o interesse sobre os contornos dos direitos envolvidos e sua execução.

Essa é a beleza do Direito Autoral. A sua capacidade de existir em espectros amplos e diferenciados, ainda que no corpo de uma pessoa.

Fonte: Migalhas