Em busca de preços justos para os medicamentos

Uma equipe da OMS procura por estratégias para ajudar os países a negociar com as farmacêuticas. “Elas cobram quanto percebem que podem cobrar”, diz conselheiro da entidade

A Organização Mundial da Saúde (OMS) se propôs a um desafio audacioso. Nos próximos meses, estudará como as empresas farmacêuticas determinam o preço pelo qual vendem seus medicamentos, um mistério mais bem guardado do que a fórmula de muitas drogas. A investigação faz parte de um plano para elaborar um modelo de preço para medicamentos mais justo – leia-se mais baixo. “As empresas cobram pelos medicamentos quanto elas percebem que podem cobrar”, afirma o advogado Peter Beyer, conselheiro da OMS em Genebra e um dos integrantes do grupo de investigação. No ano que vem, o comitê de que Beyer faz parte deve divulgar diretrizes que ajudem as empresas a nortear sua política de preços e, principalmente, que ensinem aos governos estratégias mais eficientes de barganhar preços.

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A situação chegou ao limite com o lançamento, nos últimos anos, de uma nova geração de drogas para tratar diferentes tipos de câncer e de um medicamento que elevou as chances de cura da hepatite C de 40% para mais de 90%. As descobertas significaram, sem dúvida alguma, uma esperança importante para milhões de pacientes. Mas deixaram governos e sistemas de saúde do mundo todo em uma situação ainda mais difícil: como bancar tratamentos que custam milhares de dólares para cuidar de apenas um único paciente? Na prática, isso significa que alguns poderão ser tratados e curados. Muitos outros não. Uma estimativa sugere que, se o Brasil pudesse comprar o tratamento da hepatite C a um preço similar ao dos genéricos, seria possível tratar todos os doentes até 2019. Do contrário, apenas em 2063 teremos tratados 80% das pessoas que precisam.

A OMS está procurando entre diversos modelos internacionais as melhores ideias para chegar a um preço mais justo – tanto para pacientes e sistemas de saúde quanto para a indústria farmacêutica. Nessa seara, ninguém está protegido. Os países de renda mais alta também sofrem com os tratamentos cada vez mais caros porque, para eles, dificilmente há desconto. O governo dos Estados Unidos, que não controla os preços, está começando a discutir o problema diante do custo das novas drogas.

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O Brasil dá passos importantes nesse tipo de negociação: centraliza as compras de alguns medicamentos, como é o caso da droga contra a hepatite C. Comprando mais, paga-se menos. Seguindo o mesmo princípio, fez um acordo com outros países sul-americanos, como a Argentina, o Chile e o Uruguai, para fazer compras conjuntas. A estratégia mais ousada de negociação – a quebra de patente – foi adotada pelo Brasil uma vez. Em 2007, o país anunciou que produziria o genérico do antirretroviral Efavirenz, usado no tratamento contra o vírus HIV. Quebrar patentes é considerado um recurso extremo, porque compromete a credibilidade do país e o deixa sujeito a sanções comerciais internacionais.

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Em maio, a OMS deu apoio ao governo da Colômbia, que ameaçava quebrar a patente da droga Glivec, contra o câncer. “Preços inacessíveis de medicamentos essenciais são uma razão legítima para decretar licença compulsória”, dizia a carta da OMS ao governo colombiano. Após a polêmica, o país conseguiu negociar preços melhores, sem desrespeitar a patente. É uma briga que poucos países parecem dispostos a comprar – e que não precisa chegar a esses termos necessariamente. Mas a negociação por preços melhores tem de começar. “Se os governos não determinam limites para os preços das drogas, eles aumentam”, afirma Beyer. Leia a entrevista completa.

ÉPOCA –  É possível definir qual é o preço justo de um medicamento?
Peter Beyer – Essa é exatamente a questão que queremos responder.O objetivo é alcançar uma cobertura universal para os tratamentos. Hoje, todo país tem seu próprio modelo: alguns controlam os preços e outros não. As estratégias não parecem as ideais: não produzem preços justos. Vamos analisar os modelos internacionais e identificar as vantagens e desvantagens de cada um.

ÉPOCA – Por que a OMS decidiu discutir esse assunto?
Beyer – Nós temos sido abordados por países membros dizendo que está se tornando cada vez mais um problema – particularmente, em respeito ao preço do novo tratamento da hepatite C. É uma das principais razões pelas quais esse assunto tem surgido frequentemente. Os tratamentos oncológicos são outra preocupação.

ÉPOCA – As empresas dizem que os medicamentos estão ficando cada vez mais caros porque descobri-los está mais difícil. Como contornar esse desafio?
Beyer – O aumento de preço não é consequência do aumento do investimento em pesquisa e desenvolvimento. É claro que desenvolver uma nova droga não é barato, mas é só uma parte da equação. Um estudo sério, feito por uma comissão europeia há alguns anos, chegou à conclusão de que as empresas investem mais em marketing do que em pesquisa e desenvolvimento. Isso é confirmado quando se analisam os relatórios financeiros das principais empresas farmacêuticas. Eles gastam mais dinheiro em marketing e na distribuição das drogas. O aumento de preço é um reflexo de quanto as empresas percebem que podem cobrar pelos medicamentos.

ÉPOCA – É ético estabelecer o preço de uma droga pensando apenas em quanto se pode lucrar com ela?     
Beyer – O preço precisa ser justo para todos os envolvidos no sistema, inclusive para as empresas. Nesse projeto, também estudaremos medicamentos essenciais [para doenças que atingem boa parte da população e cujos preços deveriam ser sempre acessíveis]. Nesses casos, percebemos que há poucos fornecedores. Falta retorno do investimento para essas drogas mais baratas. Pode ser uma das razões pelas quais temos cada vez menos empresas produzindo esses medicamentos. Se queremos que as empresas permaneçam no mercado, particularmente no de genéricos, elas também precisam ser capazes de ter lucros razoáveis.

ÉPOCA – Se as empresas estabelecem os preços com base em quanto acham que podem ganhar com o medicamento, qual é o papel dos governos para estabelecer limites?
Beyer – Segundo nossa experiência, se os governos não determinam limites para os preços das drogas, eles aumentam. Se seu governo não negocia os preços, os preços serão mais altos. Os Estados Unidos, por exemplo, não controlam o preço. São as empresas essencialmente que fixam o preço de mercado que elas acham que podem praticar.

ÉPOCA – Até países cuja maior parte da população tem renda alta são afetados pelos preços?
Beyer – Cada vez mais esse problema atinge também países com renda alta. No passado, ele era visto como uma questão de países de baixa e média renda, mas nós vemos que os maiores desafios são para países de renda alta e para países como o Brasil, que têm de negociar preços acessíveis para cada novo medicamento patenteado que chega ao mercado.

ÉPOCA – Por causa desses problemas, há organizações internacionais advogando pela suspensão de patentes, principalmente em casos como o da nova droga para hepatite C. Essa é uma estratégia a ser usada?
Beyer – As patentes são um sistema com o qual os membros da Organização Mundial do Comércio concordaram. Dentro desse acordo há certa flexibilidade, o que inclui a licença compulsória [quando um governo suspende, unilateralmente, uma patente]. Se um medicamento é inacessível, você pode usar esse instrumento para permitir a competição com genéricos. O Brasil usou a licença compulsória com o antirretroviral Efavirenz, em 2007. Depois de o Brasil usar uma vez esse instrumento, a negociação com as empresas ficou mais fácil. Elas sabem que o país poderia usar esse instrumento novamente, então, talvez elas se tornem mais propensas a negociar um preço. Recentemente, nós aconselhamos a Colômbia a usar esse instrumento.

ÉPOCA – Os governos resistem em usar mais a licença compulsória por medo de retaliações comerciais?
Beyer – É uma decisão dos governos nacionais se eles querem usar esse instrumento ou não. Dependem também se eles têm de usar. No tratamento da hepatite C, da Gilead, centenas de países podem comprar o medicamento por causa do acordo de licenciamento, então, eles não têm de usar esse instrumento. Outros países, que não estão incluídos nesse instrumento, talvez possam considerar usá-lo. Mas, claro, é uma decisão que o governo tem de tomar.

ÉPOCA – Algumas empresas, como a Gilead, que produz o tratamento da hepatite C,  estabelecem preços de acordo com a renda do país: ricos pagam mais caro, como uma forma de subsidiar os mais pobres. É uma solução adequada?
Beyer – O que gostamos no modelo que a Gilead usa é que ele permite que algumas centenas de países comprem medicamentos genéricos produzidos por fabricantes indianos, que, em um acordo com a Gilead, receberam autorização para não pagar pela patente. Os países que não estão no acordo de licenciamento, como o Brasil ou os países de renda alta, questionam o que é um preço justo. É verdade que a Gilead tem esses preços diferentes, para tentar dividir o fardo entre vários países. O problema é: quem está definindo o que é um preço justo para um país específico?

Fonte: Época