Software livre e a internet dos negócios jurídicos autorais

Mariana Piovezani Moreti*

No negócio jurídico autoral, segundo o artigo 29 da Lei de Direitos Autorais1 é exigida manifestação expressa de vontade para sua validade, ou seja, a vontade do autor pode ser expressa por qualquer forma, mas jamais presumida ou deduzida. Essa regra, no entanto, se aplica aos negócios jurídicos que tenham por objeto a licença do uso da obra, conferindo exclusivamente o direito pessoal de uso da obra, não havendo transferência de titularidade. Por outro lado, também há o negócio jurídico autoral em que o autor transfere a titularidade dos seus direitos através da cessão, que pode ser em caráter definitivo ou não.

Na hipótese de cessão de direitos em caráter definitivo, seja de todos ou de um dos direitos, o negócio deve ser registrado e, a teor do artigo 50 da Lei de Direitos Autorais alguns elementos essenciais devem constar no instrumento: objeto, prazo, preço e local. A inobservância desses elementos não leva automaticamente a invalidação do negócio, pois a lei supre a ausência de definição dessas informações: prazo de cinco anos, o contrato se presume oneroso, e o contrato é interpretado restritivamente quanto ao local e objeto.

Os programas de computador (Software) são regidos pela Lei 9.609 de 1998 e concede ao Autor do programa os mesmos direitos previstos na Lei de Direitos Autorais, com algumas exceções e peculiaridades, mas não prevê regras para interpretação dos negócios jurídicos cujo objeto seja o Software.

A problemática reside justamente na interpretação dos negócios jurídicos autorais realizados sob a licença Software Livre², uma modalidade extremamente recente que dá aos usuários a liberdade de executar, copiar, distribuir, estudar, mudar e melhorar o software; seu código é aberto, disponível ao público, tanto na sua versão original como nas ulteriores. De acordo com o site do GNU algumas liberdades essenciais devem ser garantidas e preservadas aos usuários:

a) a liberdade de executar o programa como o usuário desejar, para qualquer propósito;
b) a liberdade de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo às suas necessidades. Para tanto, acesso ao código-fonte é um pré-requisito;
c) a liberdade de redistribuir cópias de modo que o usuário possa ajudar ao próximo;
d) a liberdade de distribuir cópias das versões modificadas a outros. Desta forma, o usuário pode dar a toda comunidade a chance de beneficiar de suas mudanças.

Contudo, diversas situações podem emergir a partir da licença do Software Livre, como a hipótese de ausência da licença de uso especificada no ato do licenciamento, ou em que o autor do software faça reivindicações ou limitações sobre as liberdades inerentes ao sistema, ou ainda, a formalização de negócios jurídicos cujo software seja oriundo de um software livre, mas que, por opção do Autor, o novo software passa a ser restrito, com o novo código fechado, fugindo, assim, da finalidade da licença. Cabe, nesses casos, a interpretação do negócio jurídico.

De acordo com Silvio De Salvo Venosa (2014, p. 397) “interpretar o negócio jurídico é determinar o sentido que ele deve ter; é estabelecer o conteúdo voluntário do negócio” para após buscar as normas jurídicas que nascem da declaração de vontade. Trata-se de uma interpretação de um fenômeno psíquico, de fatores sociais, históricos, pessoais e linguísticos, o que faz da interpretação um fenômeno extremamente importante para a segurança negocial. As regras para interpretação existem, portanto, para garantir que o negócio jurídico não seja modificado, mas apenas definido.

No Código Civil são encontradas regras gerais de interpretação dos atos jurídicos que funcionam como veículos condutores da legislação privada, inclusive do Direito Autoral. No artigo 112 há previsão de que nos negócios jurídicos a intenção consubstanciada prevalece sobre a linguagem literal, reconhecendo, portanto, que a vontade é elemento de interpretação. No artigo 113 é disposto que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração, referindo-se a boa-fé objetiva como regra de comportamento que possui três funções: interpretativa, no sentido de ser critério para estabelecer o sentido e alcance da norma; integrativa, no sentido de preencher lacunas; e limitadora de direitos subjetivos, principalmente no campo da autonomia privada (AMARAL, 2003, p. 426). E ainda, o artigo 114 que prevê a interpretação estrita dos negócios jurídicos a título gratuito, predominando o critério subjetivo sobre o objetivo, “considerando-se a circunstância de que o declarante pratica uma liberalidade, aumentando o patrimônio do destinatário, sem contraprestação equivalente, critério também aplicável nos casos de renúncia de direitos” (AMARAL, 2003, p. 423).

Além dessas regras gerais de interpretação dos negócios jurídicos, há no artigo 4° da Lei de Direitos Autorais3 a previsão da interpretação restritiva. Paulo Nader (Apud POLI, 2008, p. 44) afirma que a atividade de interpretação e seus efeitos, quando restritiva, diminui o sentido da linguagem, pois estaria mais ampla do que a vontade real das partes.

Considerando que o Software Livre propõe liberdades a ele inerentes, a partir do momento em que o Autor manifesta sua vontade nesse sentido, assim como o usuário aceita tais limitações negociais, os negócios devem ser interpretados à luz desses paradigmas.

Para Leonardo Macedo Poli (2008, p. 45), o Software Livre, no silêncio da licença de uso e em cumprimento da sua finalidade deve ser interpretado restritivamente para garantir aos usuários, no mínimo, as seguintes formas de utilização:

a) liberdade de execução do programa;
b) liberdade de distribuição de cópias e derivações;
c) liberdade de transformação, adaptação ou aperfeiçoamento do programa;
d) liberdade de acesso ao código fonte das derivações realizadas.

Contudo, quanto ao desrespeito dos limites propostos pelo modelo de licença (Software Livre), a interpretação restritiva não tem aplicação absoluta, especialmente considerando as regras gerais do Direito Civil, de forma que é preciso ao intérprete buscar a vontade real das partes, a vontade objetiva, o conteúdo, as normas que nascem da sua declaração, além do sentido mais adequado que leve em conta a boa-fé, o fim econômico do negócio e a própria funcionalidade do Direito Autoral.



REFERÊNCIAS

AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5. ed. ver., atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

BRASIL, Lei n° 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências.

______. Lei n° 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br> Acesso em 18 de out. 2017.

POLI, Leonardo Macedo. Direito Autoral: parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

VENOSA, Silvio De Salvo. Direito Civil: parte geral. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2014.

 



* Advogada. Graduada em Direito pela UEL; Pós-graduada em Direito do Estado com Concentração em Direito Tributário pela UEL; Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo IDCC; Pós-graduada em Direito Aplicado pela EMAP; Mestranda em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação pela UEM..

1 O artigo se refere as modalidades de utilização da obra do autor em que deve haver autorização prévia e expressa do mesmo.

2 O Software Livre nasceu de um movimento cujo percursor foi o Projeto GNU , iniciado pelo americano Richard Stallman, que em 1985 lançou o “Manifesto GNU”, no qual constam as bases desse movimento.GNU quer dizer “GNU’s Not Unix”. Unix era o sistema operacional (e software proprietário) existente nos anos 1980 e o software livre veio fazer contraposição a ele.

3 Art. 4º: “Interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais”