STF pode derrubar artigo de lei que atrasa análise de patentes de medicamentos

Remédios contra câncer, HIV e até possível fórmula contra a Covid-19 estão na lista de produtos que tiveram exclusividade prorrogada para que órgão federal tenha mais tempo para verificar pedidos

O parágrafo único de um artigo da lei federal de propriedade industrial está sendo contestado no Supremo Tribunal Federal por supostamente favorecer a lentidão na análise de patentes por parte do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). A ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5529) movida em 2016 pelo Ministério Público Federal (MPF) deve impactar diretamente o setor farmacêutico, cuja indústria é parte interessada no processo, porque só pode produzir alguns medicamentos genéricos quando a vigência de patentes de grandes laboratórios expirar.

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O tema chegou a entrar em pauta no Supremo em maio, mas foi retirado. A expectativa é de que volte à discussão a partir de agosto, especialmente porque a relatoria é do ministro Luiz Fux, que a partir de setembro assume a presidência da Corte.

No Brasil, o criador de uma invenção ou inovação pode ter direito exclusivo a explorar os lucros com o produto por até 20 anos, conforme a lei 9.279/96. Esse prazo começa a contar a partir da data de depósito no Inpi, ou seja, do pedido oficial ao órgão para que examine a criação e o direito de propriedade temporária.

Mas o ponto de contestação é o parágrafo único do artigo 40. Caso a conclusão do processo administrativo demore mais de 10 anos, o prazo de vigência da patente será contado a partir da concessão do direito. Assim, o período de proteção pode ultrapassar o prazo de 20 anos estabelecido em lei, chegando, em alguns casos, a somar 30 anos de exploração desse direito.

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Conforme o MPF, na prática, com esse dispositivo legal, muitas patentes são prorrogadas em função da demora do Inpi em examinar os pedidos. A Procuradoria-Geral da República requer na ação que esse trecho da lei seja declarado inconstitucional.

Consequências para produção de remédios mais baratos

Na avaliação de Reginaldo Arcuri, presidente do Grupo FarmaBrasil (veja a entrevista completa abaixo), que representa as maiores fabricantes de medicamentos genéricos do país, esse parágrafo permite que, na prática, diante da impossibilidade de julgar os processos no prazo, o órgão federal prolongue a vigência das patentes para além do esperado e do praticado em outros países.

Segundo ele, o impacto no setor farmacêutico é grande, por exemplo, porque impossibilita que uma fórmula de remédio de marca possa ser produzida na versão genérica por outros laboratórios. 

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– Enquanto se tem esses medicamentos protegidos por patentes, é o detentor da patente que estabelece o preço. Então o governo tem que comprar de acordo com o preço que ele negocia com o detentor da patente. Mas não tem concorrentes. Quando a patente cai, começa a ter concorrência – defende Arcuri.

Além disso, a insegurança jurídica atrapalha o planejamento do setor e gera prejuízos. As indústrias se programam pelo calendário da vigência das patentes a fim de se preparar para a produção de novas fórmulas tão logo as exclusividade deixe de vigorar. Mas corriqueiramente são surpreendidas pela extensão da proteção por mais alguns anos.

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De remédios contra o câncer até possível fórmula contra a covid-19 está na lista da prorrogação

Levantamento da Câmara dos Deputados apontou que o medicamento contra o câncer Avastin, por exemplo, que teria a patente extinta em 2018, teve prorrogação da proteção até 2023, devido aos atrasos na conclusão do processo administrativo do Inpi. 

A fórmula está longe de ser a única. Na lista de medicamentos que tiveram prorrogação de prazo beneficiados pelo artigo 40 estão pelo menos 74 remédios. Dentre eles há fórmulas para tratamento contra HIV, artrite reumatóide, diabetes, hepatites e linfomas. Pelo menos 20 deles são remédios contra câncer.

São medicamentos que custam de R$ 39 a R$ 113 mil, adquiridos na maior parte pela rede pública de saúde. Há também uma fórmula que cientistas estudam para avaliar o potencial contra a covid-19, o favipiravir, fabricado exclusivamente por um laboratório japonês, cuja patente também já deveria ter expirado no Brasil, mas foi estendida até 2023.

Um estudo elaborado pela professora Julia Paranhos, do Grupo de Economia da Inovação, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, identificou que entre 2014 e 2018 o governo federal gastou R$ 10,6 bilhões, ou cerca de R$ 1,9 bilhão por ano, com apenas nove medicamentos que teriam a patente expirada entre 2010 e 2019, mas que tiveram prorrogações de até 8 anos por parte do Inpi.

Pelos cálculos dos pesquisadores, se fossem substituídos por genéricos ou biossimilares, poderia gerar economia aos cofres públicos de até 55% no cenário mais drástico.

Procurado pela reportagem, o Inpi afirmou apenas que o órgão se posiciona a favor da constitucionalidade do artigo 40 e do parágrafo único que permite a dilatação de prazos. Disse ainda, que já forneceu “subsídios para a Advocacia-Geral da União (AGU), a instituição que faz a defesa do dispositivo legal impugnado perante o Supremo Tribunal Federal (STF)”.

Já o Supremo disse que ainda não há prazo para que o processo entre na pauta de julgamentos do plenário.

Entrevista

Esse artigo favorece quem é o detentor da patente, pois é quem estabelece o preço. Reginaldo Arcuri, presidente do Grupo FarmaBrasil, que reúne os principais laboratórios de produção genéricos do país

Por que o senhor defende tornar o parágrafo do artigo 40 da Lei de Patentes inconstitucional? Como isso afeta a produção de medicamentos e outros produtos industriais no Brasil?

Reginaldo Arcuri – O Instituto Nacional da Propriedade Industrial usa [esse dispositivo legal] para dizer que há essa janela para compensar um pouco o problema do instituto e que precisa ser resolvido. O Brasil não pode ter prazos tão longos para examinar patentes. Mas, por outro lado, isso favorece muito mais quem tem a patente. E esse é o nosso problema. Porque patente é uma coisa que tem mão e contramão. Tem uma mão que é: eu investi muito dinheiro para desenvolver seja o que for, um equipamento eletrônico ou medicamento. E no mundo inteiro é justo que essa pessoa tenha durante um período a possibilidade de ter um privilégio de ficar sozinho no mercado. 

Patente é basicamente isso. O Estado diz: “Inovação é importante, nós precisamos disso”. Como é uma coisa que envolve risco, quando o cara consegue patentear, ele vai estar sozinho no mercado. A contramão disso é que quando acaba esse prazo, que tem de ser um prazo determinado, como está na Constituição, aí sim a sociedade vai poder se aproveitar disso, porque outras pessoas vão poder produzir e, principalmente, outras pessoas ou empresas vão poder desenvolver outras inovações a partir daquilo cuja patente se extinguiu. No mundo inteiro é assim e normalmente o prazo é de 20 anos. Agora, no Brasil, com esse artigo 40 (da lei de propriedade industrial), esse parágrafo, que praticamente não existe em nenhuma outra legislação no mundo, você cria a possibilidade de ter até 10 anos a mais do período de proteção da patente. 

E o pior é que se cria uma instabilidade jurídica, porque como pode ser isso, nunca se sabe se serão só os 20 anos ou terão mais. Além disso, tem outro artigo nessa lei, que é o 44, que diz que basicamente se tem proteção desde o momento que deposita a patente. Então, ninguém entra a começar a produzir, quando não tem certeza desses prazos. Esse é o problema central: a insegurança jurídica e a possibilidade de proteger uma coisa por um prazo indeterminado, que segundo a Constituição tem que ter prazo determinado.

No mundo inteiro é assim e normalmente o prazo é de 20 anos. Agora, no Brasil, com esse artigo 40 (da lei de propriedade industrial), esse parágrafo, que praticamente não existe em nenhuma outra legislação no mundo, você cria a possibilidade de ter até 10 anos a mais do período de proteção da patente. E o pior é que se cria uma instabilidade jurídica. Reginaldo Arcuri, FarmaBrasil

E para as pessoas? Como isso afeta a vida delas?

Reginaldo Arcuri – Interessa a elas porque obviamente quando se tem um mecanismo que diz que só quem tem essa patente por estar no mercado, o preço é estabelecido por quem tem esse privilégio. Então quando você vê o nosso caso, por exemplo, medicamento, é uma coisa que você obviamente tem que ter uma capacidade de permitir que as pessoas tenham acesso cada vez maior. Aí tanto o acesso de medicamentos quanto os genéricos, que são medicamentos que tem uma competição muito grande, quanto os medicamentos mais complexos, que estão sendo desenvolvidos, e que tem nesse caso, no Brasil, um papel extremamente relevante para nós e para as contas do governo. 

O exemplo fundamental hoje no Brasil são os medicamentos chamados anticorpos monoclonais, para tratar câncer, artrite reumatóide, doenças autoimunes, e que tiveram um salto na tecnologia. E são medicamentos que em alguns casos levam a dois desfechos extremamente relevantes: ou a doença fica sob controle e permite que a pessoa tenha uma vida normal ou pode caminhar para a cura. Quem compra esses medicamentos no Brasil é basicamente o governo federal para distribuir gratuitamente aos hospitais, pois não são medicamentos que podem ser comprados em farmácias. E são medicamentos muito caros. Para se ter ideia, eles representam hoje mais ou menos 10% do que o governo faz de compra centralizada do chamado componente de alto custo e eles consomem 60% do orçamento para compra de medicamentos do SUS.

Quando se tem um mecanismo que diz que só quem tem essa patente por estar no mercado, o preço é estabelecido por quem tem esse privilégio. Então quando você vê o nosso caso, por exemplo, medicamento, é uma coisa que você obviamente tem que ter uma capacidade de permitir que as pessoas tenham acesso cada vez maior. 

De que forma o senhor avalia o impacto da prorrogação das patentes nessa questão?

Reginaldo Arcuri – Enquanto se tem esses medicamentos protegidos por patentes, é o detentor da patente que estabelece o preço. Então, o governo tem que comprar de acordo com o preço que ele negocia com o detentor da patente. Mas não tem concorrentes. Quando a patente cai, começa a ter concorrência. A indústria brasileira, além de produzir a maior parte dos genéricos, além de produzir vários medicamentos de tecnologia mais avançada, já está produzindo esse tipo de anticorpo monoclonal. Cada vez mais você tem o que interessa para o país, que é: eu posso produzir no Brasil. E eu dependo fundamentalmente de que a patente não vai permitir que quem desenvolveu a produção ataque a minha produção e diga: “não, isso é uma produção ilegal, você não pode fazer isso”. 

A Constituição diz que você tem que ter um prazo limitado para a patente, que você tem que ter segurança jurídica, tem que ter competição na economia. Então a nossa participação nessa ação, que foi proposta pela Procuradoria-Geral da República, é no sentido de que esse artigo seja declarado pelo Supremo como inconstitucional. Não temos nada contra a lei de patentes em si, porque não essa mas as leis de patentes são universais no mundo, mas essa jabuticabinha brasileira é que precisamos afinar com o que diz a Constituição.


Fonte: NSC | Clipping: LDSOFT
Foto: NSC