A indústria da moda e os desafios para a proteção das marcas no mundo do metaverso e dos NFTs

Empresas titulares de grandes marcas que visam atuar devem analisar os países cujos usuários dos seus produtos terão maior aderência para a respectiva adequação com medidas protetivas.

Desde 2021, o Metaverso vem se tornando um dos nichos mais promissores da indústria da moda, à medida que o interesse por produtos digitais ligados a tokens não fungíveis (NFTs) atrelados às redes blockchain e à atividade em interfaces de realidade virtual cresce de forma significativa.

O termo Metaverso apareceu pela primeira vez em 1992 na obra de ficção Snow Crash, escrita por Neal Stephenson. A história da obra situava-se em um futuro não tão distante, no qual seus personagens utilizavam-se de um ambiente virtual intrinsecamente ligado ao mundo físico, no qual a interação entre usuários era feita por meio de seus avatares, isto é, suas representações virtuais dentro da plataforma.

Trinta anos se passaram desde a criação da noção de Metaverso, alimentando o imaginário humano com as possibilidades tecnológicas possíveis de serem atingidas pela realidade virtual e aumentada, na qual as pessoas poderão conviver usando avatares customizados em 3D, em diferentes ambientes.

Matthew Ball, autor do best-seller “The Metaverse: And How it Will Revolutionize Everything”, define o Metaverso como “uma rede massivamente dimensionada e interoperável de mundos virtuais 3D em tempo real que pode ser experimentada de forma síncrona e persistente por um número efetivamente ilimitado de usuários com um senso de presença individual e com continuidade de dados, tais como, identidade, histórico, direitos, objetos, comunicações e pagamentos”.

Os NFTs, por sua vez, sigla em inglês para non-fungible tokens, são representações digitais de bens infungíveis, isto é, de bens que não podem ser trocados ou divididos por outros da mesma espécie. Para a obtenção desta “infungibilidade”, os NFTs são atrelados a redes blockchains (redes já previamente conhecidas pela hospedagem de criptomoedas como a Bitcoin) que garantem a sua autenticidade e excepcionalidade. Todo e qualquer bem digital pode ser transformado em um NFT: desde uma simples imagem a até mesmo uma roupa virtual, dentro e fora de ambientes de Metaversos, podendo inclusive ser utilizado em plataformas digitais mais convencionais, além da confecção de smart contracts.

Essa transformação de bens digitais em NFTs acontece por um processo chamado de tokenização, no qual a inserção do bem na rede blockchain produz um código único, transparente e imutável atrelado ao próprio bem, capaz de ser transferido a um terceiro interessado.

Um dos principais motivos que justifica o interesse e investimento no mundo digital do Metaverso e dos NFTs pela indústria da moda é o fato de os usuários poderem adquirir itens com exclusividade nesses ambientes. Não apenas roupas, calçados e diversos acessórios para compor seus avatares que interagirão nos ambientes virtuais, como também obras de arte consideradas únicas e exclusivas.

De acordo com recente levantamento feito pelo Banco Morgan Stanley, espera-se que a demanda digital por marcas de moda e luxo no âmbito virtual cresça de forma exponencial nos próximos anos e resulte em vendas extras para o setor, que podem chegar a movimentar cerca 50 bilhões de dólares até 20303.

Por isso, grandes marcas já correm para conquistar seu espaço nessa nova realidade virtual, com adoção de estratégias que garantam a lucratividade, mas sem perder o conceito de exclusividade que as consolida no mundo real e torna seus produtos objeto de desejo.

A infungibilidade e exclusividade que as essas novas interações com o mundo virtual oferecem já atrai investimentos por grandes marcas como, Burberry, Balenciaga, Gucci, Dolce & Gabanna e Nike. Já consideradas pioneiras no ramo, essas marcas vêm utilizando justamente a tecnologia dos blockchains para a criação de um mercado de bens de luxo digitais.

Em setembro de 2021, a Dolce & Gabanna anunciou uma coleção inteira de roupas no formato de NFTs4, que foi vendida em menos de um mês, por meio de um leilão virtual no valor de 1885.719 ether5, o equivalente a 5,7 milhões de dólares. Em dezembro do mesmo ano, a Nike anunciou a compra da RTFKT, uma startup focada na criação e venda de tênis virtuais que já chegou a vender um par de tênis por 20 ether, isto é, cerca de 80 mil dólares. Enquanto isso, a Balenciaga apresentou neste último mês de julho sua coleção de NFTs intitulada “To the Moon” 6, que contém virtual tokens estilizados com mais de 8.300 desenhos exclusivos datados dos anos 1950, realizados por Cristóbal Balenciaga, fundador da grife.

A Gucci, por sua vez, foi responsável pela criação do mundo virtual “Gucci Garden”, por meio da plataforma Roblox, na qual é possível que avatares vistam versões virtuais de peças de roupas de antigas coleções da grife, sendo que a aquisição de uma bolsa virtual na plataforma por 4 mil dólares pode ultrapassar o valor do mesmo modelo comercializado no mundo real7. Mas se engana quem imagina que tais bens virtuais serão desenvolvidos e estarão limitados para uma única plataforma de Metaverso: as grandes marcas também vêm investindo na interoperabilidade dos seus produtos, seja na capacidade de seus bens poderem ser utilizados em diferentes mundos virtuais, seja na interação entre o próprio mundo real e o mundo virtual.

Esse é o caso da Nike que, em parceria com a RTFKT, passou a comercializar8 o “AR Genesis Hoodie”, casaco físico que contém chip embutido atrelado a uma NFT. Esta interconexão entre o produto físico e sua respectiva representação digital permite que a Nike adicione regularmente novos recursos e características vinculadas ao produto como, por exemplo, associação do token virtual a ingressos de eventos exclusivos. No mesmo caminho, a Dolce & Gabanna também já anunciou a intenção de oferecer ao usuário a opção de receber fisicamente o mesmo produto adquirido virtualmente.

Outro motivo que justifica o investimento e interesse de grandes marcas da indústria da moda no setor é justamente a possibilidade de proteger seus ativos no ambiente digital. Diante do enorme leque de opções oferecidas para que as marcas se aproximem dos consumidores cada vez mais frequentes do mundo virtual, a necessidade de proteger e registrar não apenas seus nomes como também seus demais ativos neste âmbito se torna iminente.

Afinal, apesar de, no caso dos NFTs, haver registros oficiais perante redes confiáveis que certificam a autenticidade e propriedade do item adquirido por meio de tal tecnologia, imagens e demais itens virtuais podem ser facilmente copiados, o que acaba criando um ambiente também propício para aplicação de golpes, venda de versões não originais de NFTs já existentes, violações de direitos de propriedade intelectual, além da criação de ambientes virtuais não autorizados pelos titulares de tais direitos.

Assim, considerando que a proteção conferida às marcas sobre seus produtos físicos também deve abranger suas versões digitais, encontrar formas eficazes de ampliar e garantir a mesma proteção e efetividade dos direitos de propriedade intelectual no Metaverso e em NFTs já tem se mostrado um ponto de alerta e grande desafio para as empresas.

Esse é o cenário da disputa de maior repercussão atual na mídia sobre o tema. De um lado, encontra-se a Hermès, marca de luxo francesa conhecida pela exclusividade em seus produtos, que detém os direitos de marca registrada sobre seu próprio nome e da icônica bolsa Birkin. Do outro lado da disputa, está Mason Rothschild, pequeno artista independente da cidade de Los Angeles, que, por volta de dezembro de 2021, criou imagens digitais de versões das bolsas Birkin intitulando-as de “MetaBirkins” e as vendeu mediante a criação de NFTs sobre tais imagens.

Em resposta, a Hermès ajuizou ação, ainda pendente de julgamento pelo Tribunal de Nova York, alegando violação e diluição de marca registrada, além de apresentar evidências de que a mídia e os consumidores acreditavam erroneamente que os NFTs MetaBirkin estariam associados à marca Hermès. A primeira decisão interlocutória do processo foi proferida em 18 de maio de 2022, reconhecendo a probabilidade de direito dos pedidos da Hermès. Contudo, ainda não há decisão de mérito sobre o caso.

O julgamento do caso Hermès International v. Mason Rothschild pelo Tribunal de Nova York certamente será considerado pioneiro sobre como avaliar os direitos de marcas registradas que se sentirem violadas pelas inovações e produtos advindos de NFTs e de ambientes virtuais criados por terceiros não autorizados.

No Brasil, em relação ao registro de marcas, feito perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), o que se observa é que alguns grandes nomes do ramo da moda que pretendem se consolidar no mundo das NFTs e do Metaverso, bem como se proteger nesse novo ambiente virtual, vêm formulando pedidos de registro das suas marcas nas classes 9 (produtos virtuais suscetíveis a downloads), 35 (lojas de departamento virtuais) e 41 (serviços de entretenimento para uso nos ambientes virtuais).

A Nike já é uma das empresas com o maior número de registros de marca sobre o tema no país visando a sua adequação e demonstrando sua forte atuação no âmbito digital. A empresa já depositou, por exemplo, sua marca “Nikeland” (mundo virtual da Nike dentro da plataforma Roblox”), cujo registro aguarda exame pela autarquia. A Balenciaga, por sua vez, também teve recentemente pelo INPI a concessão de registro à Marca “BB” que, além de ter em sua descrição o uso para armações de óculos, joias e bolsas, também é descrita para uso de “software baixável, programas de computador baixáveis”, o que demonstra o seu objetivo de utilizar a marca dentro do ambiente virtual.

Importante mencionar que no Brasil, o parágrafo 1º do art. 128 da Lei da Propriedade Industrial9 estabelece que só poderão ser registradas marcas que sejam compatíveis com o objeto social da empresa. Por esse motivo, a Nike também já adota em seu objeto social desde 2016 a atividade de “gestão de ativos intangíveis não financeiros”, estando, assim, de acordo qualquer registro de marca relacionado à criação e venda de NFTs.

Assim, considerando que o Metaverso é composto por plataformas cujos provedores são de diversos países, as divergências entre a aplicabilidade de práticas de PI em diferentes jurisdições certamente se tornarão problemáticas e cada vez mais frequentes.

Por isso, empresas titulares de grandes marcas que visam atuar, bem como proteger seus ativos nesse novo mundo digital, devem analisar os países cujos usuários dos seus produtos terão maior aderência para a respectiva adequação com medidas protetivas. No Brasil, inicialmente, recomenda-se a essas empresas, ainda que de forma preventiva, a adequação do seu objeto social e solicitação do registro de suas marcas perante o INPI, o que certamente as auxiliará na regularidade de atuação nesse novo ambiente digital, além de mitigar riscos diante de ações de terceiros não autorizados que possam colocar suas marcas e demais ativos de PI em risco.

Fonte: Migalhas Imagem: Tecnoblog