Como o ecossistema dos games impacta a legislação brasileira

Mais de 70% dos brasileiros afirmam usufruir de jogos eletrônicos como meio de diversão ou passatempo.

Os jogos eletrônicos (games) são uma forma de entreter pessoas ao redor do mundo há muitos anos, sejam elas crianças ou adultos, e com o desenvolvimento tecnológico eles passaram não só a fazer parte da rotina das pessoas como forma de entretenimento, isto é, pessoas jogando algum jogo ou assistindo outra pessoa jogar, mas também como uma profissão dentro dos esportes eletrônicos (ou e-sports). Há muito tempo deixou de ser apenas um joguinho para virar uma indústria que está na casa dos bilhões de dólares.

Segundo a Pesquisa Games Brasil, em 2022, 74,5% dos brasileiros disseram que jogam algum jogo eletrônico e 84,4% dos brasileiros afirmaram que os jogos eletrônicos estão entre suas principais formas de diversão.

Muito além da diversão, o mercado de games é muito mais complexo do que as pessoas que não estão inseridas na comunidade imaginam, desde a criação do jogo em si pela publisher (desenvolvedora), microtransações de skins dos jogos, produção de conteúdo, transmissão em plataformas de streaming, os e-sports, no qual conta ainda com profissionais de diversas áreas do conhecimento, como psicólogos, fisioterapeutas e massagistas, além da variedade de modalidades e suas especificidades para aqueles que fazem parte da comunidade.

Para entender o mercado de games, não só no Brasil, é necessário que entendamos também essas complexidades, o conceito de comunidade nos games e como ela afeta no sucesso do jogo, bem como a organização de todo esse ecossistema que, apesar de ser considerado um esporte tradicional, inclusive por recentes projetos de Lei no Brasil, muito diferem de um esporte tradicional.

É sabido que a indústria de games é uma das maiores do mundo e vem crescendo cada vez mais. Ela corresponde à maior parte do faturamento da indústria do entretenimento, e esse crescimento ficou ainda maior após o período da pandemia do novo coronavírus no ano de 2020, em que boa parte da população teve que ficar em casa e criar passatempos.

Só no Brasil, a indústria de games, impulsionada pela pandemia, cresceu cerca de 140% (cento e quarenta por cento) em 2020 em micro transações.

Com os games em franco crescimento no Brasil muito se pergunta sobre como esse mercado é regulado ou se ele, de fato, precisa ser regulado, além das diversas problemáticas jurídicas que envolvem esse ecossistema, como relações trabalhistas, propriedade intelectual, proteção dos dados, segurança da informação. É importante, portanto, que para um crescimento sustentável, as empresas envolvidas nesse processo de crescimento da indústria gamer no Brasil se atentem às legislações aplicáveis no âmbito de suas atividades.

Propriedade intelectual

Do ponto de vista dos desenvolvedores, fazemos menção ao campo da propriedade intelectual, com a criação de jogos novos, marcas, criação de trilha sonora e skins dos próprios jogos, todos esses pontos remetem à necessidade da proteção dessa criação ou da utilização de obras de terceiros em seus próprios jogos (uma música por exemplo).

Na legislação brasileira, os jogos eletrônicos podem ser enquadrados como “programas de computador”, recebendo proteção da Lei de Software (Lei n. 9.609/1998), bem como do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).

Importante destacar, nesse sentido, que a proteção não se limita apenas ao código do jogo, estendendo-se também, como dito acima, à sonorização, trilha sonora, enredo, personagens e demais elementos contidos no jogo.

Dessa forma, a publisher, além de atentar-se com os direitos de terceiros, deve também garantir o correto registro de suas criações nos órgãos competentes, como o INPI, na Escola de Belas artes, no caso de layouts e desenhos, e na Biblioteca Nacional, para garantir a proteção das trilhas musicais utilizadas.

Privacidade e Proteção dos Dados Pessoais

Como já destacado, o crescimento do mercado dos games fez com que cada vez mais pessoas se registrem em plataformas virtuais. Esses registros, por sua vez, envolvem um elevado tratamento de Dados Pessoais dos usuários, como nome, e-mail, CPF e muitos outros.

Assim, as empresas envolvidas na indústria de games devem se atentar na necessidade se adequação à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (Lei nº 13.709/18) uma vez que essa se aplica a qualquer operação de tratamento de Dados Pessoais realizadas no país, inclusive para operações em meios digitais, como no caso dos jogos eletrônicos.

Entre os demais pontos previstos na legislação, destaca-se que as empresas devem tratar apenas os Dados Pessoais efetivamente necessários para suas atividades, especialmente quando o jogo for disponibilizado para crianças e adolescentes, em que a lei exige maior rigor por parte de quem vai tratar o dado pessoal. Além disso, as informações sobre o tratamento devem ser fornecidas de forma clara e acessível.

A violação de direitos relacionados à Dados Pessoais, além de poder resultar em multas financeiras e sanções administrativas, também acabam por macular a reputação das empresas na visão dos jogadores e do mercado como um todo.

Trabalhista

O esporte eletrônico também é um esporte e, com isso, as organizações contam com seus atletas (cyber-atletas), treinadores, analistas e demais profissionais envolvidos nas competições.

Entrando no ordenamento jurídico, existem interpretações divergentes sobre a natureza de tais vínculos dos atletas com suas respectivas organizações, o que demanda esforço teórico do judiciário e dos advogados atuantes para garantir a segurança jurídica de todas as partes desta modalidade esportiva.

Os contratos de cyber-atletas nasceram sob o escudo do patrocínio quando engatinhavam os campeonatos da modalidade. Hoje, tais contratos alcançam uma complexidade que vai muito além do escopo original, muitas vezes mascarando relações trabalhistas claras das equipes com os cyber-atletas. A nomenclatura da avença em si é irrelevante ao âmbito trabalhista, eis que impera o princípio da “primazia da realidade”, ou seja, a hipossuficiência presumida do “empregado” frente ao “empregador” faz com que a realidade apurada suprima o escrito.

Do ponto de vista dos tribunais, é entendido serem aplicáveis aos cyber-atletas os mesmos ditames dos jogadores de futebol, pois que compete à justiça laboral conhecer e dirimir controvérsias derivadas da relação de emprego entre “clube” e “atleta” envolvendo direitos típicos trabalhistas, nos termos do inciso I do artigo 114 da CF/1988. O rol da tipicidade trabalhista pode incluir, mas sem limitar-se, cessão, extinção de vínculo e direitos de imagem, assuntos recorrentes tanto nos esportes tradicionais quanto nos e-sports, aplicando-se também o conceito de empregador e empregado da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.

Não há como negar que os contratos firmados com cyber-atletas emanam de uma relação essencialmente trabalhista em regra, se excetuando lógico casos em que este vínculo não supera os requisitos da legislação trabalhista.

Ainda que muitas das empresas envolvidas com esporte eletrônico já estejam cientes dessa problemática, reforça-se a necessidade de aplicação do raciocínio para considerar que e-Sports constituem atividade desportiva, sendo relevante trazer aos contratos de cyber-atletas as possibilidades das premissas estabelecidas pela Lei 9.615/98, que institui normas gerais sobre desporto e é popularmente conhecida pela alcunha de “Lei Pelé” e da própria CLT.

Segurança da Informação e Código de Ética

Uma das pautas mais relevantes tem sido a da segurança da informação, especialmente para quem desenvolve o jogo eletrônico. Como esclarecido, o cenário de jogo eletrônico é muito complexo, com ele existe a comunidade e a publisher muitas vezes acaba como responsável por gerir aquela comunidade.

Com grandes poderes, sempre vem grandes responsabilidades e é essencial para a empresa desenvolvedora garantir a segurança dos seus jogadores e a manutenção da integridade competitiva, pois nem todos estão no ambiente de jogos para se divertir, mas também para causar situações adversas ao jogador de boa-fé.

Não são poucos os casos que vemos de trapaças (cheats), roubo de contas de acesso, itens de jogo. Para cada um desses temas existem diversas possibilidades do ponto de vista de segurança para serem tratadas, como a implementação de duplo fator de autenticação, investimento em ações educacionais aos jogadores para não cair em golpes, mas podemos citar como a proteção das trapaças como uma das mais difíceis.

Dentro do contexto de fraudes podemos citar contas de acesso hackeadas por falta de cumprimento de requisitos de segurança como o duplo fator de autenticação, golpes de itens dos jogos, também conhecidos como “scams”, que nada mais é que o roubo de skins dos jogos, em alguns casos itens raros e que são transacionadas através de um mercado próprio desses itens.

Não obstante a isso, os games costumam enfrentar problemas também no contexto ético, com assédios, ameaças, cyberbullying tanto no âmbito de jogadores casuais como com jogadores profissionais. As referidas condutas devem ser estritamente observadas e preventivamente – na medida do possível – controladas pelas publishers e organizações de e-sports.

Uma fraude também muito comum em jogos online são as trapaças, que é o uso de algum software ou até mesmo hardware que dá ao jogador uma vantagem indevida, trazendo risco à integridade competitiva. Diante desse cenário, inclusive, a grande maioria das publishers, sobretudo aquelas que seu jogo também se tornou grande demais também como esporte eletrônico (casos de League of Legends, Counter-Strike: Global Offensive, Valorant entre outros jogos), optam por desenvolver um software anti-cheat, a fim de conter o avanço de trapaceiros que estão a todo momento “inovando” no campo da trapaça, ameaçando a desejada integridade competitiva.

Ainda que para alcançar um bem maior, isto é, um jogo íntegro e que não gere desconfiança para o público, também é de extrema importância que as desenvolvedoras se atentem para a informação desses usuários também sobre seus softwares anti-cheat, principalmente quando este software atuar no dispositivo do jogador com privilégios altos (o chamado anti-cheat em modo kernel) – esse é um papo para um próximo artigo.

Responsabilidade Civil e Criminal

Para concluir, sempre a principal questão envolvendo qualquer negócio – de quem é a responsabilidade. No caso do game, há muitas partes envolvidas, que vão dos cyber-atletas, técnicos, analistas a nutricionistas e psicólogos. Dependendo do caso, pode haver aplicação de responsabilidade objetiva e solidária, pelas hipóteses do Código de Defesa do Consumidor, conforme artigos 12 e 18.

Uma preocupação elevada é a quantidade de crianças e adolescentes que participam deste ambiente, logo há situações de questionamento desde sobre despesas (pagamentos e compras relacionadas ao game – discussão de validade de negócio jurídico e eventual repúdio), até situações que possam envolver plágio, contrafação com infração de direitos autorais de terceiros.

Além disso, a exposição de crianças e adolescentes a um ambiente em que é livre para qualquer público, pode ocasionar na prática de assédio e crimes como àqueles contra honra (calúnia, difamação e injúria), além do estelionato digital, crimes, inclusive, que se praticados contra criança e adolescente são passíveis de agravamento da pena (arts. 138 e seguintes; 171, §5º, II CP), devendo as desenvolvedoras, organizações e empresas envolvidas nos games estarem sempre atentas para mitigar esses riscos.

Com isso finalizamos aqui os principais pontos de atenção para o mercado de games quando falamos de legislação brasileira e medidas de segurança para seus jogos. O assunto é muito complexo e não é a intenção deste artigo esgotar cada um desses temas, mas trazer ao olhar do leitor que vive o dia a dia dos games sobre a necessidade da adequação à legislação a fim de mitigar riscos ao seu negócio.

Fonte: Exame