Qual o papel da Propriedade Intelectual na defesa dos direitos relacionados aos recursos genéticos?

São recursos de grande relevância para a indústria, em especial de setores como o farmacêutico, cosmético, agricultura e pecuária.

Quais as fronteiras entre a Propriedade Intelectual e as questões relacionadas aos recursos genéticos (RGs) hoje no mundo? Como estabelecer as questões éticas e de defesa de direitos? Essas são algumas das várias questões que envolvem o tema, que é um desafio para os profissionais do direito envolvidos nesta discussão. Hoje, alguns dos principais temas em debate na Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) têm relação, por exemplo, com a prevenção de patentes indevidas. 

É certo que as invenções baseadas em recursos genéticos ou desenvolvidas a partir deles entram na lista de produtos que são patenteados. Alguns países membros da OMPI têm adotado políticas voltadas para a proteção defensiva dos RGs, além da prevenção da concessão de patentes indevidas relativamente a invenções com base em RGs ou desenvolvidas a partir da utilização de conhecimentos tradicionais que não preencham as exigências de patenteabilidade, tais como novidade e inventividade, ou a aplicabilidade industrial. 

Os recursos genéticos envolvem recursos naturais (plantas, animais e microorganismos, no todo ou em partes) e de diversas comunidades locais e tradicionais que possuem conhecimentos específicos associados, os chamados conhecimentos tradicionais. Esses recursos são de extrema importância para o ambiente brasileiro e, de forma geral, para o sistema de propriedade intelectual em nível global, porque são fundamentais para o desenvolvimento científico, social e tecnológico do país. Eles geram ativos como patentes, direitos autorais e cultivares. 

Assim, são recursos de grande relevância para a indústria, em especial de setores como o farmacêutico, cosmético, agricultura e pecuária.

“Uma das grandes discussões relacionadas à propriedade intelectual é como garantir um equilíbrio entre o potencial proveito desses recursos e sua proteção, ou seja, uma tentativa de equilibrar os interesses sociais envolvidos: de um lado a proteção da biodiversidade e sociodiversidade e, do outro, a proteção de produtos ou variações transgênicas que tenham sido desenvolvidas com base nestes recursos”, avalia Paula Beatriz Duarte Celano, sócia da área de Propriedade Intelectual, Life Sciences e Entretenimento do BBL Advogados.

A proteção dos recursos genéticos pode envolver o desenvolvimento e a implementação de uma série de mecanismos jurídicos, como bases de dados e sistemas de informação relacionados. A ideia por trás disso é evitar a concessão de patentes indevidas.

Essa discussão serve de base para analisar as invenções baseadas em recursos genéticos ou desenvolvidas a partir do uso deles. Elas são elegíveis para proteção, por meio do sistema de propriedade intelectual, tanto em forma de registro de patente, como no caso de atividades de pesquisa e de melhoria vegetal que podem ajudar na criação de novas variedades vegetais, por meio de um sistema que regulamente os direitos de quem usa essa tecnologia e desenvolveu novos produtos. A partir disso, alguns tipos de informação de sequência digital e recursos genéticos são também suscetíveis a serem protegidos pelo direito de autor.

Tratados internacionais

Nesse contexto, a Convenção sobre Diversidade Biológica é importante para entender a situação da proteção dos direitos genéticos no Brasil. O tratado da Organização das Nações Unidas estabelecido durante a ECO-92 – a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro, é um dos mais importantes instrumentos internacionais relacionados ao meio ambiente, porque promove a conservação da biodiversidade e seu uso sustentável.

A Convenção está estruturada sobre três bases principais – a conservação da diversidade biológica, o uso sustentável da biodiversidade e a repartição justa e equitativa dos benefícios provenientes da utilização dos recursos genéticos – e se refere à biodiversidade em três níveis: ecossistemas, espécies e recursos genéticos.

O tratado abarca tudo o que se refere direta ou indiretamente à biodiversidade e funciona, assim, como uma espécie de arcabouço legal e político para diversas outras convenções e acordos ambientais mais específicos, como o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança; o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura, as Diretrizes de Bonn; as Diretrizes para o Turismo Sustentável e a Biodiversidade, os Princípios de Addis Abeba para a Utilização Sustentável da Biodiversidade, as Diretrizes para a Prevenção, Controle e Erradicação das Espécies Exóticas Invasoras; os Princípios e Diretrizes da Abordagem Ecossistêmica para a Gestão da Biodiversidade, etc. A Convenção também deu início à negociação de um Regime Internacional sobre Acesso aos Recursos Genéticos e Repartição dos Benefícios resultantes desse acesso, estabeleceu programas de trabalho temáticos e levou a diversas iniciativas transversais.

Além da Convenção, o Protocolo de Nagoia – documento que viabiliza a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos da biodiversidade e abrange pontos como pagamento de royalties, estabelecimento de joint ventures (associação de empresas), financiamentos de pesquisa, compartilhamento de resultados e transferência de tecnologias e capacitação – estabeleceu a obrigatoriedade de atendimento à legislação do país de origem do recurso genético ou conhecimento tradicional. 

Esse sistema é o mais eficiente para remunerar a conservação dos recursos genéticos que não podem ser patenteados, bem como para valorizar e retribuir os benefícios decorrentes do acesso ao conhecimento tradicional, que não preenche os requisitos de patenteabilidade e não pode ser protegido por esse instrumento. Assim, as proteções de propriedade intelectual não são instrumentos efetivos para a proteção quer dos recursos genéticos, quer dos conhecimentos tradicionais.

“Se as criações derivadas do acesso aos recursos genéticos ou aos conhecimentos tradicionais forem protegidas e, no processo de reconhecimento dessa propriedade intelectual, for verificado se houve tal acesso à biodiversidade, o processo de concessão de propriedade intelectual pode ser importante instrumento para viabilizar o pagamento de repartição de benefícios, esse sim meio efetivo para remunerar e reconhecer o valor do recurso genético e dos conhecimentos tradicionais para o desenvolvimento de inovações tecnológicas”, explica Anita Pissolito, sócia sênior da área de Direito Regulatório e Ambiental do Nascimento e Mourão Advogados.

Segundo a especialista, para permitir essa verificação no momento de concessão de uma patente, por exemplo, pode ser adotado o sistema autodeclaratório, em que o usuário informa se acessou recurso genético ou conhecimento tradicional a ele associado. Além disso, bancos de dados criados pelas comunidades tradicionais, com relação a conhecimentos tradicionais, podem auxiliar na identificação do provedor do conhecimento, garantindo acesso restrito a tal base de dados. E para as sequências digitais (DSI), os bancos de dados podem passar a solicitar a informação do recurso genético de origem da sequência e respectivo local de obtenção, de modo a permitir a plena aplicação dos princípios da CDB e do Protocolo de Nagoia.

Biopirataria

A biopirataria é a apropriação indevida e não autorizada de recursos biológicos, conhecimentos tradicionais e biodiversidade, principalmente em países em desenvolvimento ou entre comunidades locais, realizada principalmente por empresas de países desenvolvidos. O objetivo é obter vantagens comerciais, incluindo a obtenção de patentes sem a devida autorização ou compensação adequada para as comunidades detentoras desse conhecimento e desses recursos. 

A prática resulta na exploração e utilização de conhecimentos tradicionais sem reconhecimento ou benefícios para as comunidades locais. Isso pode gerar, por exemplo, a concessão de patentes indevidas e levar a monopólios sobre recursos genéticos, restringindo o acesso de outras partes interessadas, inclusive das próprias comunidades locais. A exploração não autorizada de recursos biológicos pode levar à sobre-exploração e, consequentemente, à perda da biodiversidade em regiões onde esses recursos são encontrados. Com isso, as comunidades locais podem perder oportunidades econômicas e de desenvolvimento, uma vez que seus conhecimentos e recursos são utilizados sem a devida compensação. 

Um exemplo internacional bastante conhecido de biopirataria é o “Caso da Patente do Arroz Basmati”. Em 1997, a empresa americana RiceTec Inc. obteve uma patente nos Estados Unidos para um híbrido de arroz conhecido como “Basmati”. O Basmati é uma variedade de arroz reconhecida por suas características únicas, como aroma distinto, sabor e textura, sendo tradicionalmente cultivado em países da região do subcontinente indiano. A concessão dessa patente gerou controvérsia e preocupação entre os países produtores de Basmati, que temiam que a RiceTec monopolizasse a comercialização do arroz Basmati e restringisse o livre uso desse recurso genético por outros produtores. 

Para contestar a validade da patente e proteger os direitos associados ao Basmati como parte do seu patrimônio genético e cultural, a Índia liderou esforços e apresentou evidências históricas e científicas que comprovavam que o Basmati era um recurso genético tradicionalmente cultivado na região, com uso e conhecimento transmitidos ao longo de gerações.

Após muita pressão e uma longa batalha legal entre os governos da Índia e dos Estados Unidos, a patente foi reexaminada pelo Escritório Americano de Marcas e Patentes (USPTO, na sigla em inglês). Como resultado desse reexame, a patente foi alterada, removendo o termo Basmati e anulando várias reivindicações anteriormente concedidas. Esses resultados foram muito importantes, levando o governo da Índia a declarar oficialmente que venceu o caso de biopirataria do arroz Basmati. 

Outro caso relevante de biopirataria ocorreu no Brasil com a planta nativa Jaborandi (Pilocarpus microphyllus). Em 2002, a Merck obteve uma patente nos Estados Unidos relacionada a um extrato da planta Jaborandi para uso como agente antiglaucomatoso, para tratar o glaucoma ao reduzir a pressão intraocular. Essa concessão de patente gerou preocupações de que os conhecimentos tradicionais e o recurso genético estavam sendo indevidamente apropriados por uma empresa estrangeira, sem garantir uma repartição justa e equitativa dos benefícios com as comunidades locais detentoras desse conhecimento milenar. 

Os dois exemplos destacam a importância de proteger os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, especialmente em países com rica biodiversidade e herança cultural. 

“Essas questões exigem uma abordagem cuidadosa e colaborativa entre países, comunidades locais, empresas e governos para garantir que os recursos genéticos sejam utilizados de maneira ética, justa e sustentável, promovendo a preservação da biodiversidade e o respeito aos conhecimentos tradicionais de forma equitativa e benéfica para todos os envolvidos”, afirma Ana Carolina Camino Roche Moreira, especialista da área de recursos genéticos do Carlos Nogueira Advogados.

Em 2015, o Brasil promulgou a Lei da Biodiversidade, que regulamenta o acesso ao patrimônio genético nacional e estabelece regras para a partilha justa e equitativa dos benefícios decorrentes desse acesso. O objetivo principal da norma é assegurar o uso justo e sustentável dos recursos genéticos presentes no território brasileiro. Essa legislação representa avanços significativos na proteção dos RGs e conhecimentos tradicionais associados, garantindo sua utilização ética e devidamente benéfica às comunidades detentoras. 

Outra ferramenta importante dentro do contexto brasileiro é o SisGen, que garante a transparência e conformidade com as normas estabelecidas pela Lei da Biodiversidade. O sistema informatizado foi criado para acompanhar e monitorar as atividades relacionadas ao acesso aos RGs e conhecimentos tradicionais associados. Através dessa ferramenta, é possível rastrear e controlar o acesso aos recursos genéticos, garantindo a adequada partilha de benefícios. O sistema também oferece maior segurança jurídica aos pesquisadores, empresas e demais interessados que buscam utilizar esses recursos de maneira legal e sustentável.

“A biopirataria representa uma ameaça à preservação desses recursos valiosos e ressalta a necessidade de acordos internacionais e legislações eficazes para garantir o uso ético e equitativo dos recursos naturais e conhecimentos transmitidos ao longo das gerações. Ela tem efeitos prejudiciais para comunidades locais e para a preservação da natureza. Proteger adequadamente os Recursos Genéticos e conhecimentos tradicionais é fundamental para garantir justiça, sustentabilidade e o devido respeito à nossa diversidade cultural e biológica. Com essas ações, podemos contribuir significativamente para um futuro mais equitativo e harmonioso entre os seres humanos e a natureza que nos cerca”, avalia Roche Moreira.

Fonte: Lex Latin