Estamos atravessando uma pandemia intensa causada pela Covid-19 e existe uma corrida com foco nas soluções desta crise, especialmente nas vacinas. A Propriedade Industrial prevê a apropriação de inventos através do mecanismo das patentes, que pode ser aplicado em diversas áreas, mas que será abordado aqui com ênfase em medicamentos e vacinas. Inicialmente, vamos deixar claro que “marca é marca” e “patente é patente”. Muitos acham que podem patentear uma marca, mas são mecanismos diferentes de apropriação de Capital Intelectual.
No caso de uma vacina, sua invenção pode ser objeto de uma patente. A composição da fórmula ou seu processo de fabricação, caso atenda aos requisitos legais, poderiam ser patenteados. Geralmente o nome comercial destes produtos são registrados como marca pela indústria farmacêutica para terem exclusividade sobre o uso.
Segundo o artigo 42 da Lei 9279/96, a patente concedida confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com esses propósitos. O Estado, através de lei, outorga um poder temporário de exclusividade na sua exploração como forma de retribuição do investimento e estímulo ao ciclo virtuoso de geração de conhecimento. O titular descreve toda a tecnologia na patente em troca de um tempo de exploração exclusiva, em regra, 20 anos.
Esses direitos são fortemente apoiados pela indústria farmacêutica pois viabilizam a recuperação dos investimentos feitos na pesquisa e desenvolvimento dos medicamentos. Aos que são contra isso fica a pergunta: por que alguém, sem garantias de sucesso, gastaria muito tempo e dinheiro desenvolvendo algo para que outros possam copiar fazendo engenharia reversa?
Os laboratórios do mundo inteiro estão correndo pela busca da solução. No caso de uma vacina para o Corona Vírus com os requisitos de patenteabilidade, quem conseguir, pode pensar que pelo fato dela poder evitar milhões de mortes e dezenas de trilhões em prejuízos financeiros, pode cobrar o que bem entender pela sua exploração.
TITULAR DA PATENTE PODE COBRAR O QUE QUISER?
Porém, não é bem assim que funciona. Os tratados internacionais são permeados pelo entendimento de que deve haver um equilíbrio entre políticas comerciais (OMC), políticas de saúde (OMS) e direitos de propriedade intelectual (OMPI). Deve ser cobrado um valor considerado “justo” pelo medicamento
Em casos extremos, dependendo da emergência ou interesse público, temos o que no jargão popular é conhecido como “quebra de patente”, mas que nos termos corretos da lei está prevista como “licença compulsória”, regulada pelos artigos 68 a 74 da Lei da Propriedade Industrial.
No caso de uma cobrança abusiva no valor do remédio, por exemplo, como patente é um direito territorial, o governo do país que concedeu a patente aciona esse instrumento intervindo sobre o monopólio legal de sua exploração. É um exemplo de justificativa para a previsão legal destas “quebras de patentes”, que são licenças obrigatórias e foram pensadas pelos legisladores como forma de prevenir abusos do exercício destes direitos conferidos pela patente.
Na legislação brasileira podemos citar alguns casos relevantes como abuso econômico (art. 68 da LPI), e emergência nacional ou interesse público (art. 71 da LPI). Inclusive, não são raras as tratativas entre o Ministério de Saúde e a indústria farmacêutica, por exemplo.
MAS ESTA QUEBRA DE PATENTE RETIRARIA PODERES DE SEU DONO?
Não. O termo “quebra da patente” é tido como equivocado pois não significa que o seu titular perdeu o direito, mas sim teve a suspensão temporária do direito de exclusividade. Este mecanismo segue normas nacionais e internacionais. No âmbito internacional podemos citar acordos como o TRIPS da OMC e o CUP, que objetivam harmonizar as legislações de propriedade intelectual dos países, e o Brasil está de acordo.
Primeiro, o governo pretendente deve tentar negociar com o titular da patente. Se não tiver acordo, declarar os motivos da possível licença. Caso o conflito de interesses perdure, deve declarar a licença e oferecer uma remuneração financeira justa ao titular da patente pela exploração de seu invento, os royalties.
CASOS DE “QUEBRA DE PATENTE”
O próprio governo brasileiro, em 2007, publicou a portaria 886/2007 declarando o antirretroviral Efavirenz (que combate o vírus HIV) como de interesse público, e o laboratório dono da patente teve um prazo para se pronunciar. As negociações já aconteciam havia um tempo. Com seu fracasso, o presidente brasileiro assinou o decreto 6.108/2007, “quebrando sua patente”, o que possibilitou a importação do medicamento na sua modalidade genérica de um outro laboratório.
Desde 2001, por diversas vezes o governo brasileiro especula sobre a necessidade da “quebra de patente” de alguns medicamentos. Porém, foi a primeira vez que o Brasil, de fato, utilizou o mecanismo da licença compulsória visto que, no caso concreto, apesar de todas as tentativas de negociação, o laboratório americano Merk Sharp & Dohme estava oferecendo o medicamento para os pacientes brasileiros por U$$ 1,59 enquanto para os da Tailândia por U$ 0,65.
Com a quebra, o governo brasileiro conseguiu comprar de um laboratório da Índia por U$$ 0,44, em vez dos U$$ 1,11, que foi o melhor preço proposto pelo laboratório americano. Neste caso o governo estipulou um valor de 1,5% sobre o preço de custo de fabricação ou do preço que lhe foi entregue, como royalties para o titular da patente.
POR QUE O GOVERNO NÃO QUEBRA OUTRAS PATENTES?
A patente consiste em um instrumento de desenvolvimento tecnológico e econômico do país. O interesse social é relevante. É muito importante deixar claro que a licença compulsória constitui um instrumento de exceção. Ele não pode ser usado como uma regra. Nosso governo deve se pautar no cumprimento de contratos. Este tipo de intervenção radical no mercado deve ser evitado ao máximo ou outros tipos de problemas podem surgir, retaliações econômicas, por exemplo.
Em 2009, José Gomes Temporão, então ministro da saúde, afastou a possibilidade da cogitada quebra de patente da vacina contra o vírus influenza (H1N1), optando por acordos de transferência de tecnologia entre laboratórios brasileiros e estrangeiros. Isso permitiu o contato, por exemplo, do Laboratório Biomanguinhos/Fiocruz ao conhecimento da produção de vacinas contra o rotavírus, e do Instituto Butantã à tecnologia para fabricação da vacina contra a gripe sazonal.
Em 2018, tivemos novo impasse sobre a licença compulsória do Spinraza (quase 250 mil reais um frasco), medicamento usado para Atrofia Muscular Espinhal. Ele é um medicamento sem escala, de alto custo e grande complexibilidade na sua produção. Esses motivos são um alerta para que se pense diversas vezes sobre utilizar a “quebra da patente”. Ela pode desestimular a inovação na Indústria farmacêutica e desprover diversas doenças raras de tratamento eficiente.
O próprio recém-demitido ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em pronunciamento publicado em 2019 pela EBC – Empresa Brasileira de Comunicação, disse: “O país jamais deveria quebrar patentes de medicamentos, uma vez que isso prejudica a inventividade e o tempo gasto pela iniciativa privada com pesquisas e pesquisadores”.
COMO DEVE SER USADA
Só a previsão legal da “quebra de patente” já é um fator que eleva o poder de barganha do governo de diversos países com a indústria farmacêutica. Sinalizar a possibilidade de usá-la já é um instrumento de pressão por melhores preços, mas que deve ser usado com muita cautela. Como consequência, isso reflete na maior possibilidade de acesso aos medicamentos, não só, mas principalmente, da população dos países em desenvolvimento.
E países desenvolvidos com encomia sólida também fazem uso do artifício de acordo com a situação. Os Estados Unidos, por exemplo, já utilizaram para finalidades militares, motivos de segurança nacional e, também, para evitar monopólio econômico no caso de fusões entre empresas, o que poderia caracterizar prática anticompetitiva.
BRASIL EXPLORA O SISTEMA DE PATENTES?
Os investimentos em P & D no Brasil poderiam ser mais massivos. Assim perderíamos menos profissionais qualificados que acabam indo desenvolver ciência em outros países por melhores condições de trabalho. Também existe uma crítica muito grande sobre a demora na análise das patentes aqui no Brasil e o INPI tem adotado algumas estratégias para acelerar esses processos. Em se tratando de Covid-19, o INPI está com um programa de exame prioritário de pedidos de patente de invenções relacionadas ao vírus, conforme Portaria 149, publicada em 07/04/2020.
Mesmo com todas as dificuldades ainda contamos com bons pesquisadores em nosso país. Em maio de 2018 o Instituto Butantã conseguiu a patente de um processo de produção de vacina contra a dengue no USPTO, o escritório de marcas e patentes nos Estados Unidos. Como um contrassenso, é mais um dos exemplos onde o Brasil ganha visibilidade desenvolvendo e exportando tecnologia.
Ilustrando a robustez dos investimentos na área dos medicamentos, foram investidos mais de R$ 200 milhões no projeto para o desenvolvimento desta vacina. E só para constar, o projeto poderia ter fracassado e o investimento se tornaria prejuízo. Este risco é um dos grandes argumentos das indústrias para a cobrança de altos valores.
Já imaginou como seria bom para o governo brasileiro conseguir a patente da vacina da Covid-19?
QUANTO VALERIA A VACINA DO CORONAVÍRUS?
Com o tamanho da demanda e escala de produção os valores realmente poderiam ser astronômicos. Sem contar com a projeção mundial da empresa através de mídia espontânea. Mas, como dito, o valor deve ser ponderado como qualquer outro medicamento e não super valorado em função da pandemia. Existem recursos legais para evitar abusos.
O autor é advogado atuante na área de Marcas e Patentes, Presidente da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB-ES e conselheiro do Conect da Findes.