Gestão coletiva no ambiente digital

Há quase um ano, foi publicada pelo Ministério da Cultura (MinC), ainda sob o governo da presidente Dilma Rousseff, a Instrução Normativa (IN) nº 2, de 5 de maio de 2016, que estabelece procedimentos complementares para a habilitação de associações de gestão coletiva à atividade de cobrança de direitos de autor e direitos conexos na internet.

Desde sua publicação, em razão das várias mudanças estruturais sofridas pelo MinC, pouco se havia comentado a respeito da mencionada Instrução Normativa. No entanto, recentemente, a IN foi citada em Acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para fundamentar a decisão que entendeu que qualquer ato de transmissão via streaming, com independência da forma como se dá tal transmissão, seria considerado execução pública e objeto da gestão coletiva realizada pelo ECAD[1].

Em razão da polêmica e complexidade das questões examinadas na decisão mencionada, por esta ter como um de seus fundamentos a Instrução Normativa do MinC, entende-se pertinente, ainda que de forma breve, sua análise crítica.

A publicação da IN integra um conjunto de medidas denominado Políticas de Estado para a Música lançado pelo MinC e que, segundo o próprio Ministério, busca “um sistema de proteção de direito autoral no ambiente digital mais equilibrado e justo, enfrentando as baixíssimas remunerações destinadas aos criadores musicais e a falta de transparência quanto ao controle da exploração das obras”[2].

De fato, a intenção do MinC acompanha o debate mundial atualmente em curso no âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) sobre a necessidade de atualização do sistema de direito autoral à luz dos novos modelos de negócio para a exploração de obras e prestações intelectuais desenvolvidos no contexto digital, bem como o reexame dos sistemas de remuneração de autores e artistas nesse mesmo contexto.

No entanto, apesar de legítimas as finalidades buscadas pelo Ministério, a forma adotada para se promover tal adaptação não parece a mais adequada, visto que a Instrução Normativa publicada não se restringe à mera fixação de procedimentos complementares à habilitação para a atividade de cobrança. Em realidade, a norma positiva uma interpretação da Lei de Direitos Autorais (LDA, Lei 9.610/98) que vai além de seus próprios limites conceituais.

Um primeiro ponto que deve ser destacado é que, ao prever a possibilidade de habilitação das associações de gestão coletiva para a cobrança de direitos nos casos de execução pública (art. 3º, III e art. 4º, IV da IN), a Instrução Normativa estende a aplicação desse direito aos serviços ofertados na internet através das “utilizações de obras musicais, lítero-musicais e fonogramas, por meio de transmissão que não resulte na obtenção de cópia da obra ou fonograma pelo consumidor nem qualquer forma de transferência de posse ou propriedade”.

Nesse sentido, pela aplicação dessa regra, o Minc parece ter a intenção de incluir no conceito de execução pública os atos de streaming interativo de música, o que não seria juridicamente adequado, uma vez que apenas aqueles atos que atendam aos requisitos legais exigidos para a caracterização daquele direito poderão ser classificados com tal.

A Lei de Direito Autoral prevê definição de execução pública no artigo 68, §2º que dispõe:

“Art. 68. §2º – Considera-se execução pública a utilização de composições musicais ou lítero-musicais, mediante a participação de artistas, remunerados ou não, ou a utilização de fonogramas e obras audiovisuais, em locais de frequência coletiva, por quaisquer processos, inclusive a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica”.

Pela análise do dispositivo, é possível perceber que o núcleo essencial do conceito jurídico de execução pública é a definição de “local de frequência coletiva”, de modo que a execução musical seja destinada a uma coletividade, ou seja, a um número indeterminado ou determinável de pessoas.

A LDA não criou uma definição jurídica para a expressão “local de frequência coletiva”, mas delimitou o conceito através de uma lista não exaustiva de locais considerados de frequência coletiva para fins de verificação de atos de execução pública, tais como, cinemas, bares, lojas, restaurantes ou hotéis.

Pela natureza dos locais exemplificados, pode-se entender que para que ocorra a execução pública é necessário que à obra tenha acesso ou tenha a potencialidade de acesso uma pluralidade de pessoas. A pluralidade de pessoas, nesse caso, se refere a um público que não necessariamente deva estar presente no momento da execução (público simultâneo), sendo possível a execução pública de obras em locais onde o público é relativamente ausente, como é o caso dos clientes que se sucedem em um quarto de hotel ou em um bar ou restaurante.

No entanto, apesar de não haver a necessidade de que o público seja simultâneo, a transmissão e percepção da obra pelo público deve necessariamente ser simultânea ou linear, de modo que, transmissão sem execução simultânea não constituiria execução pública de uma obra.

De outra parte, nos atos de streaming interativo, a utilização da obra se dá de forma privada e individualizada, pois nestes casos o consumidor que requer uma obra é a única pessoa no mundo a recebê-la através da transmissão feita pelo provedor de aplicação.

Além disso, como essa transmissão é interativa, não haverá simultaneidade entre o ato de transmissão e a recepção individual da obra, que poderá ocorrer em um momento posterior – por exemplo, nos casos de uso interativo com possibilidade de uso off-line. O acesso às obras colocadas à disposição, portanto, não se dará ao mesmo tempo e nem no mesmo lugar, dependendo totalmente da opção do consumidor, que possui uma postura ativa, e completamente oposta ao público da comunicação tradicional.

Em sua origem, o direito de execução pública, no sentido previsto no Convênio de Berna, se restringia a atos de comunicação cujo público está presente no lugar no qual o ato se origina. No caso brasileiro, o conceito de execução pública construído pela LDA foi estendido para abarcar outras modalidades de comunicação ao público, quais sejam, “a radiodifusão ou transmissão por qualquer modalidade, e a exibição cinematográfica”.

É importante ressaltar, no entanto, que as transmissões que o legislador tinha em mente quando incluiu a expressão “ou transmissão por qualquer modalidade” não eram os atos interativos praticados no âmbito digital e sim outras transmissões de caráter linear ou simultâneo, alternativas à radiodifusão, como é o caso da televisão por assinatura (ou serviço de acesso condicionado como atualmente é denominado) ou até mesmo atos de transmissão que se utilizam da tecnologia streaming como é caso do simulcasting ou do livestreaming. Tais transmissões são realizadas por meio de emprego de “sistemas óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotados”, como previsto na alínea “i” do inciso VIII do art. 29 da LDA, mas não possuem o caráter interativo que permite que os usuários realizem a seleção da obra ou prestação em tempo e lugar previamente determinados. Este requisito da seleção individual é essencial para que exista uma verdadeira transmissão digital interativa.

De outra parte, a Instrução Normativa publicada extrapola os limites conceituais da LDA ao positivar uma interpretação restritiva do direito de distribuição eletrônica, previsto no art. 29, VII da LDA, não considerando elementos essenciais do conceito jurídico construído pelo legislador em 1998 (ver art. 3º, II da IN).

De acordo com a LDA, tal direito patrimonial do autor consiste na “distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário”.

Assim, sem qualquer esforço interpretativo, é possível identificar no conceito de distribuição eletrônica os elementos essenciais que caracterizam os atos de streaming interativo, quais sejam, (i) o ato relevante consiste na disponibilização do acesso à obras intelectuais, (ii) essa disponibilização pode se dar com fio ou sem fio (“cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema”) e (iii) o caráter interativo e individualizado da transmissão, de modo que o acesso do consumidor à obra se dará no momento e no lugar que este individualmente escolha.

Dessa forma, o direito de distribuição eletrônico consiste no direito adequado para disciplinar os atos de exploração realizados através da internet e que possuem a interatividade como elemento essencial.

O direito de distribuição eletrônica do art. 29, VII da LDA, ao contrário do previsto na IN publicada, é independente e distinto do direito de distribuição clássico que está disciplinado em outro dispositivo da Lei (art. 29, VI), pois enquanto o ato relevante no direito de distribuição clássico é a distribuição para a transferência da propriedade ou posse do suporte no qual a obra é incorporada, no caso do direito de distribuição interativa o ato relevante é a distribuição para a oferta de acesso às obras.

A Instrução Normativa, ainda, denota certa contradição nos parágrafos 1º, respectivamente dos artigos 3º e 4º, ao estender o conceito de comunicação ao público – que segundo a própria IN se aplica às transmissões que não resultem na obtenção de cópia da obra ou fonograma, nem qualquer forma de transferência da posse ou propriedade – aos casos de distribuição nos quais, para IN, necessariamente deve haver a transferência da posse ou propriedade.

Uma mesma utilização pelo provedor de aplicação de internet não pode ser classificada ao mesmo tempo como distribuição eletrônica e como comunicação ao público/execução ao público, visto que tais direitos possuem natureza distinta e, inclusive, excludente.

Cumular o regime legal da execução pública ao regime da distribuição sujeita aos provedores de aplicação a uma inadequada situação de bis in idem. Isto é, uma mesma modalidade de utilização dando ensejo a mais de uma cobrança de pagamento. A prática, também designada por double dip (“duplo aproveitamento”), é passível de reprimenda judicial, em razão da independência entre as distintas modalidades de utilização de obras, consagrada na própria LDA (art.31 da LDA).

Em síntese, ao positivar uma interpretação que leva ao enquadramento dos atos de streaming interativo no âmbito do direito de execução pública, a IN acaba gerando mais dificuldades interpretativas do que solucionando a questão, ao adotar posições divergentes ao previsto pela Lei atual.

A Instrução Normativa seria, assim, via inadequada para inovar a interpretação do streaming como sujeito ao regime legal aplicável à execução pública. Em razão da relevância e natureza da matéria, uma medida do gênero só poderá ser adotada por meio de expressa modificação da LDA através de um processo legislativo que permita um amplo e profundo debate entre as partes interessadas e o maior amadurecimento do tema. E até que que se conclua tal reforma legislativa, qualquer decisão judicial ou ato administrativo que não estejam embasados no texto legal vigente, por mais legítimos os interesses que busquem proteger, poderão ser passíveis de questionamentos, gerando um ambiente de insegurança jurídica a todo sistema de direito autoral.

* Este é o primeiro de dois artigos escritos para marcar o mês em que se comemora o Dia Mundial da Propriedade Intelectual (World IP Day). A data, 26 de abril, é celebrada anualmente pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO) e reforça a atenção da sociedade para a necessidade de proteção dos direitos imateriais como forma de impulsionar a inovação e a criatividade.

Fonte: JOTA