O espírito escritor – As obras psicografadas, o Direito de Autor e o uso do nome do falecido

Luciano Andrade e E Carolina Diniz Panzoli

Imagine a situação de alguém, sucessor de um escritor falecido, que ingressa com uma ação pedindo para ser reconhecido como titular de direito de autor de uma obra que foi psicografada. Vai ao Judiciário para obter um provimento jurisdicional que reconheça em seu pai falecido como autor de uma obra escrita por um espírito incorporado em um médium. Estranho, não?

Agora pense na eventual defesa que o médium faria para contestar o pedido. Ele teria duas opções. A primeira é dizer que concorda com o pedido, porque se reconhece como um mero instrumento do espírito. A segunda é infirmar a pretensão do sucessor, afirmando que não existe psicografia e que o que fez é um embuste.

Imagine-se juiz do caso. Se o médium concordar com o pedido, como seria essa sentença? Você reconheceria a autoria de um espírito? O Poder Judiciário pode, pela força da sentença, confirmar que a doutrina espírita é verdadeira e que um médium incorpora um espírito?

Um processo desses já ocorreu no Brasil. Antônio Chaves narra um caso que chegou ao Supremo Tribunal Federal. A viúva de Humberto de Campos, em 1944, ingressou com uma ação contra o famoso Chico Xavier, que havia publicado um livro psicografado (Chaves, 1995), pedindo que fosse reconhecida a autoria do seu falecido marido e, por consequência, a sua titularidade por sucessão. Pediu também, caso não fosse deferido o primeiro, que determinasse a retirada da obra de circulação pelo uso indevido do nome.

Julgado o primeiro pedido, prevaleceu o entendimento adotado na sentença:

“Assim, o grande escritor Humberto de Campos, depois da sua morte, não poderia ter adquirido direitos de espécie alguma, e consequentemente, nenhum Direito Autoral da pessoa dele deve ser transmitido para seus sucessores.

Nossa legislação protege a propriedade intelectual em favor dos herdeiros até certo limite de tempo, após a morte, mas o que considera para esse fim como propriedade intelectual são as obras produzidas pelo de cujus em vida, o direito a essas é que se transmite aos herdeiros.

Não pode portanto a suplicante pretender direitos autorais sobre supostas produções literárias atribuídas ao “espírito” do autor”.

Com relação ao segundo pedido, baseado no uso do nome do falecido, a legislação da época só autorizava a insurgência em caso de calúnia. A sentença disse o seguinte:

“Como aparente proteção jurídica ao nome, reputação ou despojos, de pessoas falecidas, só se encontra em nossa legislação penal a incriminação da calúnia contra os mortos (art. 138, § 2º, do CP) e dos fatos que envolvam desrespeito aos mortos definidos nos arts. 209 e 212 do mencionado Código”.

Transportando o caso para os dias atuais é possível afirmar que a primeira parte da sentença continua de acordo com o Direito. A lei protege o direito do sucessor de autor falecido, mas, evidentemente, apenas para as obras produzidas em vida. Não cabe ao Judiciário se imiscuir em questões de fé e de crença. Rodrigo Moraes sempre preciso:

“É absurda a hipótese de legislar sobre o misterioso, o incognoscível, o religioso. Para o direito, a personalidade jurídica do ser humano começa do nascimento com vida e cessa com sua morte.Mors omnia solvit (A morte extingue tudo). Os mortos não são mais sujeitos de obrigações e direitos. A hipótese do Direito aceitar a veracidade de uma obra psicografada é tão absurda quanto a de um juiz aceitar a veracidade de uma prova criminal psicografada por uma testemunha já morta, absolvendo, por conta disso, o réu. Nenhuma lei terrena pode versar sobre psicografia, como também sobre a virgindade de Maria ou a ressurreição de Cristo (Moraes, 2007).”

Já com relação ao uso do nome do falecido, a “briga” judicial seria interessante. A evolução da proteção dos direitos da personalidade, inclusive depois do falecimento, permite que a família – atualmente – se insurja contra o uso indevido. Tome-se, a propósito, o art. 12 do Código Civil e esta decisão do STJ que o interpreta:

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. CONTRATO DE CARTÃO DE CRÉDITO CELEBRADO APÓS A MORTE DO USUÁRIO. INSCRIÇÃO INDEVIDA NOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. EFICÁCIA POST MORTEM DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA DA VIÚVA PARA POSTULAR A REPARAÇÃO DOS PREJUÍZOS CAUSADOS À IMAGEM DO FALECIDO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 12, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL. 1. Contratação de cartão de crédito após a morte do usuário, ensejando a inscrição do seu nome nos cadastros de devedores inadimplentes. 2. Propositura de ação declaratória de inexistência de contrato de cartão de crédito, cumulada com pedido de indenização por danos morais, pelo espólio e pela viúva. 3. Legitimidade ativa da viúva tanto para o pedido declaratório como para o pedido de indenização pelos prejuízos decorrentes da ofensa à imagem do falecido marido, conforme previsto no art. 12, parágrafo único, do Código Civil. 4. Ausência de legitimidade ativa do espólio para o pedido indenizatório, pois a personalidade do “de cujus” se encerrara com seu óbito, tendo sido o contrato celebrado posteriormente. 5. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 6. Restabelecimento dos comandos da sentença acerca da indenização por dano moral. 7. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO. (STJ – REsp: 1209474 SP 2010/0148220-2, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 10/09/2013, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/9/2013)

Sob ponto de vista estritamente autoral, não há grandes dúvidas, quando se trata de obras psicografadas e a respectiva autoria. Se a obra literária psicografada contiver os elementos necessários para aferir a proteção do Direito Autoral, como originalidade e criatividade, a obra será de autoria de quem a produziu nesse “plano terreno”.

Não há legislação sobre o divino e a conexão de pessoas vivas com aqueles que já estão mortos. Portanto, não há que se falar em reconhecimento de autoria do de cujus ou dos seus sucessores.

Porém, no estágio atual da proteção dos direitos da personalidade, nada impede que o médium, escritor de uma obra psicografada, seja responsabilizado pelo uso do nome do falecido.

Obras Citadas

Chaves, A. (1995). Criador da Obra Intelectual. São Paulo: Ltr.

Moraes, R. (15 de Janeiro de 2007). Obras Psicografadas e a Lei de Direito Autoral.

Fonte: Migalhas