Rabiscar uma obra de arte é ilegal?

Rabiscar uma obra de arte é ilegal?

Polêmica envolvendo o youtuber Carlinhos Maia acende debate nas redes sociais

Recentemente, o digital influencer Carlinhos Maia causou uma série de debates e polêmicas nas redes sociais. Carlinhos estava hospedado em um hotel onde está habituado a frequentar, em Aracaju. Em seu quarto, estava pendurado um quadro da artista Lau Rocha, no qual se observa uma bailarina sem rosto.

O humorista, então, realizou diversas postagens em suas redes sociais alegando que havia “ficado assustado” com o quadro durante a noite, devido à falta de rosto da personagem representada. Na manhã seguinte, enquanto era filmado, Carlinhos utilizou uma caneta para desenhar olhos e boca, dando uma face com traços infantilizados para a bailarina. Em outro story postado em sua conta do instagram, em tom de deboche, o influencer diz que os hóspedes do hotel irão agradecê-lo por isso.

O humorista, então, realizou diversas postagens em suas redes sociais alegando que havia “ficado assustado” com o quadro durante a noite, devido à falta de rosto da personagem representada. Na manhã seguinte, enquanto era filmado, Carlinhos utilizou uma caneta para desenhar olhos e boca, dando uma face com traços infantilizados para a bailarina. Em outro story postado em sua conta do instagram, em tom de deboche, o influencer diz que os hóspedes do hotel irão agradecê-lo por isso.

A artista Lau Rocha, em suas redes sociais, disse ter recebido com tristeza, choque e indignação a notícia de que uma de suas obras havia sido “vandalizada e exposta em uma rede social, por pessoa que aparenta ter influência na juventude deste país”.

Em sua defesa, Maia alegou que: “essa brincadeira foi permitida pela dona do quadro, a mesma que pagou por ele. Jamais danificaria algo que não fosse meu. (…) Então à artista peço milhões de desculpas. Mas tudo foi permitido pela dona do quadro!”

Nas redes sociais, os usuários parecem divididos quanto ao pedido de desculpas. Em defesa do humorista, uma internauta comentou que Carlinhos “fez isso com autorização da dona do hotel, e que hoje o quarto no qual está o quadro, é o mais pedido” (sic). Por fim, resume seu ponto de vista: “o quadro é dela, ela faz o que quiser!!”

O caso em questão trouxe à tona um debate antigo e complexo acerca da aquisição de obras artísticas: qual o limite de atuação que um proprietário pode exercer sobre a peça protegida por direitos autorais?

Os direitos autorais comportam duas dimensões distintas: os direitos morais do autor e os direitos patrimoniais do autor. O primeiro se refere à paternidade da obra, isto é, ao elo sagrado entre autor e obra. Ao contrário dos direitos patrimoniais, os direitos morais são, nos termos do artigo 27 da Lei 9.610/90, inalienáveis e irrenunciáveis. Desse modo, não se pode imaginar que, ao vender o quadro, a artista abriu mão desses direitos.

Os direitos morais do autor estão previstos no artigo 24 da Lei de Direitos Autorais, que fornece uma resposta fácil ao caso em debate. Isso porque o seu inciso IV determina que é direito moral do autor “assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra’’. Esse dispositivo se fundamenta na medida em que a autoria é uma emanação da personalidade e da alma, logo, danificar a obra é, em alguma medida, danificar a própria personalidade do artista.

Essa previsão legal está de acordo com aquilo determinado pela Convenção da União de Berna, que conta com 168 países signatários, e enuncia em seu artigo 6, bis, que ““independentemente dos direitos patrimoniais de autor, e mesmo após a cessão desses direitos, o autor conserva o direito de reivindicar a paternidade da obra, e de se opor a qualquer deformação, mutilação ou outra modificação dessa obra ou a qualquer atentado à mesma obra, que possam prejudicar a sua honra ou sua reputação. ”

Vale ressaltar que a ideia de que ao adquirir uma obra o indivíduo passa a ter total liberdade para fazer o que bem entender com ela está equivocada de diversas maneiras. Em primeiro lugar, tal argumento não se aplicaria sequer à propriedade material, por força do artigo 5º, XXIII, da Constituição da República, que determina que a propriedade deve cumprir sua função social. É certo, de acordo com jurisprudência pacífica e doutrina, que mesmo no caso de propriedade não intelectual, o proprietário não tem direitos absolutos, estando sujeito a limitações legais e constitucionais ao uso, gozo e fruição de seus bens.

Além disso, no caso de propriedade intelectual, pode haver uma confusão por parte do público geral. Quando se adquire um bem protegido por direitos autorais (como o quadro da bailarina sem rosto), na realidade, está se adquirindo apenas o bem material em que a obra está fixada.

Ou seja, como explicam SOUZA, SOUZA, KAMEDA et al [1], quando se adquire a propriedade de um bem móvel qualquer, seu titular poderá exercer sobre o referido bem as faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar. Consequentemente, como regra geral, o proprietário poderá destruí-la, abandoná-la, alterá-la etc.

Por outro lado, no caso de bens protegidos por direito autoral, aplica-se uma peculiaridade: a incidência da propriedade sobre o objeto, mas não sobre a obra. Assim, o proprietário precisará respeitar as limitações trazidas pela lei referentes tanto aos direitos morais do autor (que são inalienáveis), quanto aos direitos patrimoniais, nos termos do artigo 37 da lei.

Desse modo, pouco importa se a proprietária do quadro permitiu ou não que ele fosse rabiscado.

O artigo 24, IV, da Lei de Direitos Autorais se aplica ao caso na medida em que o quadro se trata de uma peça única. Mutilá-lo e danificá-lo implica em danificar a própria obra em abstrato. Seria diferente caso se tratasse de um CD com músicas, por exemplo. Nesse último exemplo, quebrar o objeto de suporte não afeta a obra em si. Quebrar um CD dos Beatles não altera em nada a obra dos Beatles, visto que a gravação está amplamente disponível, protegida, sã e salva. Porém, rabiscar uma pintura única causa danos à própria obra, que não mais poderá ser apreciada em sua plenitude.

Por fim, vale ressaltar que a garantia de proteção às obras artísticas é, muitas vezes, justificada por um interesse público maior. Recentemente, por exemplo, a historiadora britânica Pandora Mather-Lees veio a público criticar bilionários que exibem peças de grande valor artístico e histórico em seus iates. [2]

Um deles é o príncipe saudita Mohammed bin Salman, proprietário de “Salvator Mundi”, um suposto Da Vinci. Um especialista em artes revelou que a pintura serve como peça de decoração em um dos veleiros do príncipe, estando exposta a danos irreparáveis pela ação da marisia. A notícia foi recebida com fortes críticas por artistas, historiadores e especialistas, que consideram um absurdo tal atitude do monarca.

Justificar a garantia de direitos morais do autor através da lógica do interesse público é tentador, no entanto, causa a necessidade de lidar com alguns pontos.

Por exemplo, toda obra protegida por direitos autorais é dotada de interesse público suficiente a denotar proteção? A reação mais espontânea é imaginar que não.

Afinal, mesmo o desenho de um infante com giz de cera é protegido por direitos autorais, já que tal proteção independe de registro. Seria desproporcional imaginar que um pai está infringindo os direitos morais do filho de 4 anos (autor) ao jogar seus rabiscos no lixo e, portanto, sendo obrigado a indenizá-lo.

Por outro lado, possibilitar a diferenciação entre obras merecedoras, ou não, de proteção por interesse público, gera outra grande dificuldade: a quem cabe definir quais obras são objeto de interesse público? A resposta mais intuitiva, talvez, seja o Estado – o Poder Judiciário, de caso a caso. No entanto, essa possibilidade seria extremamente perigosa e facilitaria a perseguição artística. Ora, se delegássemos ao Estado Brasileiro, durante a Ditadura Militar, o poder de definir quais obras seriam merecedoras de proteção, artistas subversivos provavelmente seriam largados à própria sorte.

Outro problema é definir qual o critério para determinar se uma obra gera interesse público. Há casos em que, certamente, a resposta será clara, independentemente do critério utilizado. Poucos discordariam que a “Noite Estrelada”, de Van Gogh, é uma obra relevante. Ao mesmo tempo, poucos concordariam que o rabisco feito por uma criança de 4 anos é uma obra geradora de interesse público.

O cerne da problemática de definir um critério de seleção único implica, principalmente, em casos cinzentos, de artistas como Lau Rocha, que teve seu quadro rabiscado pelo humorista Carlinhos Maia. É difícil acreditar que alguém concordaria que o Museu do Louvre pode fazer o que bem entender com a “Mona Lisa”. Contudo, uma boa parte do público parece achar razoável que a dona do hotel possa fazer o que quiser com o quadro da artista brasileira.

É imperioso reconhecer, contudo, que a arte de qualquer autor merece proteção integral.

O próprio exemplo de Van Gogh ajuda a entender o problema. Conta-se que Van Gogh morreu pobre e sem nenhuma relevância artística. Seu trabalho passou a ser reconhecido apenas anos após seu falecimento.

É absurdo imaginar que o proprietário do quadro físico “Noite Estrelada” poderia rabiscá-lo, já que, à época, o quadro não gerava interesse público. Caso isso fosse permitido, a sociedade teria perdido a chance de contemplar a integralidade de uma das principais obras pós-impressionistas.

Nessa seara, é importante compreender que o interesse público protege a Arte de uma forma geral. Não há que se falar em uma obra específica que gera mais ou menos interesse público. Há, sim, interesse público na proteção da Arte enquanto expressão humana plural e dotada de valor em si, que deve ser protegida e fomentada indiscriminadoramente.

Portanto, a Constituição da República, os tratados internacionais relevantes e a legislação brasileira protegem os direitos do autor e identificam, na arte, uma expressão humana dotada de grande valor social. Permitir a alguém definir qual obra é merecedora, ou não, de proteção é extremamente perigoso, além de tarefa destinada ao fracasso. Logo, não se pode admitir a destruição ou vandalização de qualquer obra protegida por direitos autorais, ainda que o proprietário de seu suporte físico o queira ou permita.

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PEDRO DE ABREU MONTEIRO CAMPOS – Advogado da MCLAW, formado pela Fundação Getúlio Vargas e pós-graduando em Propriedade Intelectual.

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